Conheça Nicole Rose: a primeira jogadora trans a disputar um campeonato profissional em Minas Gerais

Por Ana Paula Andalécio (@andalecioana), Gabriela Claudino (@gcacoficial) e Letícia Oliveira (@oliveira_letis)

Mãe, esposa e atacante do Nacional Visconde do Rio Branco: quem é Nicole Rose dentro e fora dos campos?

Nicole Rose, primeira jogadora trans a disputar campeonato profissional em Minas Gerais – Foto: Assessoria NVRB

Nicole Rose faz história no esporte. Com uma trajetória de muita superação, a atacante reinicia a carreira aos 38 anos. Entre idas e vindas ao futebol profissional, ela se reencontrou no Nacional de Visconde do Rio Branco, no interior de Minas Gerais.

Em entrevista exclusiva à Revista Marta, Nicole conta um pouco da própria história e dos caminhos no esporte, desde o início em times de bairro, a chegada ao Campeonato Mineiro, o afastamento dos gramados, até o retorno ao profissional, aos 38 anos.

Nicole é a primeira mulher trans a disputar um campeonato profissional em Minas Gerais – atualmente, ela disputa o Mineiro Feminino pelo Leão da Zona da Mata. A jogadora conta
os muitos desafios na carreira no futebol, entre eles o processo de se descobrir.

Nicole passou por um longo período sem qualquer contato com o futebol – foram 11 anos
longe dos gramados. A jogadora conta que o afastamento foi em razão de ter se assumido
mulher trans, no início da carreira profissional no futebol masculino. “Então, eu resolvi me assumir e pagar o preço que foi, de fato, ficar 11 anos sem nem chutar uma bola mais, porque todos os ambientes se fecharam. Sociais, familiares, trabalho. Eu tive que sair de casa e recomeçar uma vida muito sozinha”.

Nicole é mãe e destaca a importância da filha como a maior inspiração. “Não só pelo fato de
eu ser trans, mas por eu ter 38 anos e estar começando uma carreira no futebol profissional, eu acho que pode em algum momento marcar ela lá na frente querer correr atrás de alguma coisa na vida dela. Penso muito nela e no exemplo que eu posso dar para ela”.

Atacante, Nicole começou o campeonato pelo Nacional com destaque individual. A jogadora
fez dois gols no empate por 3 a 3 com o Uberlândia na estreia do Mineiro.

Nicole Rose em campo pelo Nacional – Foto: Assessoria NVRB

Confira a entrevista na íntegra:

Você se recorda do seu primeiro time? Onde você começou a treinar?

“Era um time de futebol do bairro que se chamava Tucano Sport Club. Um amigo do meu pai montou o time para disputar campeonatos mirim, pré-mirim, criança de 8, 9, 10 anos. Na época, eu tinha 7, então eu já entrei e fiquei nesse time por dois anos. Depois, fui para um outro time que chamava Aliança, que nem sei se existe mais, mas ele era de um outro bairro, lá do Planalto (em Belo Horizonte)”.

Nessa fase de desenvolvimento, você chegou a participar de alguma iniciativa dos grandes clubes mineiros?

“O América era um projeto à parte. Atlético, Cruzeiro e América têm vários projetinhos assim, a parte que leva o nome deles, mas se aparece algum jogador lá, eles acabam puxando. E ali eu fiquei porque era muito perto da minha casa, era no bairro Ouro Preto, e eu morava no Caiçara. E aí era bem fácil de eu ir e voltar, como eu treinava quase todo dia. Esse foi o momento que eu mais me aprimorei nas qualidades que eu tenho hoje. Dali eu vou para uma categoria de base que é o Cavaleiro Negro, que é um time que jogava campeonato Mineiro contra Atlético, Cruzeiro e América, e treinava justamente dentro da UFMG na época. Daí é que eu vou para o profissional, o time chamava Luziense, era time do interior de Minas. Eu já fui direto para disputar o Campeonato Mineiro”.

Nicole, você citou que o seu primeiro time na infância era de um amigo do seu pai. Sua família tinha alguma relação com o esporte ou isso foi algo que surgiu naturalmente para você?

“O meu pai tem uma ligação muito forte com o esporte. Ele era jogador de futebol amador. Muito ruim por sinal, ele mesmo fala, mas muito apaixonado. Então ele ia pra qualquer lugar com uma chuteirinha debaixo do braço, enfiada no jornal. Quando eu tinha 5, 6 anos, eu já ia ver ele jogar em pelada, em joguinho. Então eu fui introduzida por conta do meu pai. Hoje ele é maratonista. Ele sai viajando por todo o país, vai pra Europa correr maratona e faz os treinos. Ele tem 66 anos, mas é maratonista. É um super atleta.”

A atacante Nicole Rose na estreia do Campeonato Mineiro Feminino de 2023 – Foto: Assessoria NVRB

Agora, voltando um pouco para sua retomada, o que impulsionou seu retorno após 11 anos longe do esporte?

“Então, eu fiquei 11 anos sem nem chutar uma bola, nem brincar e nem pelada eu jogava. Eu saí de casa, fiquei um tempo sozinha, e depois eu me interessei em voltar a jogar tênis. Então, quando eu volto para o tênis, eu volto para o esporte em geral. Eu comecei a dar aula em clube, e dava aula inclusive no CEU (Centro Esportivo Universitário), na UFMG.

E aí a vida vai passando, eu conheço a minha esposa. Na época a gente estava namorando ainda, eu falei para ela brincando que eu jogava bola e que eu jogava para caramba, mas ela não botava nenhuma fé. Ela arrumou uma pelada pra eu jogar, com as amigas dela e eu fiquei muito feliz. Eu joguei de óculos lá, mas joguei bem para caramba”.

Depois da primeira pelada, como você fez para manter o futebol na sua vida? Você buscou algum time para continuar a praticar?

“Logo depois dessa pelada, uns dois meses depois, eu conheci o Bharbixas Esporte Clube, que é um time de BH de futsal de homens gays, que permite que mulheres trans joguem no time. Existe uma liga nacional, que é a Ligay, a gente foi jogar campeonato em Brasília, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em São Paulo, a gente viajava para disputar os campeonatos LGBTs.

E aí nesse momento eu que sou introduzida de volta na competição e eu penso em voltar para o futebol feminino. Além disso, Tifanny do vôlei já está em ativa, então já percebi uma brecha ali que eu consegui voltar. Percebo que se tem a Tifanny ali, talvez eu consiga jogar futebol. E em 2019 começo a fazer o tratamento que o Comitê Olímpico Internacional pede”.

Como foi esse período de tratamento? Você conseguiu alguma oportunidade de voltar a jogar profissionalmente logo em seguida?

“Eu precisava fazer ele até julho de 2020. E aí em março, entra a pandemia. Meio que parou tudo, né? Eu fiquei dois anos sem jogar futebol de novo. Mais dois anos. Não me arrisquei a voltar, porque minha filha nasceu no início da pandemia, em março de 2020. E aí no começo do ano agora, é quando eu falo em voltar a jogar de novo, só que nem tava pensando em jogar profissional, para falar a verdade. Pensei: ‘Vou jogar futebol amador mesmo, quem sabe algum time me aceita’”.

Mãe e esposa, Nicole retoma sua carreira profissional aos 38 anos – Foto: Assessoria NVRB

Nos times amadores que você jogou, vocês participaram de alguma competição oficial? Em algum momento você sofreu algum impedimento?

“Fui treinar em um time, falando que eu queria só treinar com elas, que eu queria só voltar a jogar. Aí surge um campeonato, eles me inscreveram. Consegui jogar e fui bem aceita no futebol amador feminino em BH. Fiquei introduzida no amador e pensei ‘joguei um e passou, vou jogar o outro campeonato agora’. Mas esse era da Federação Mineira. Quando eles foram me registrar, bateu um registro de profissional de 17, 18 anos atrás, com nome antigo, com tudo errado. E aí a Federação Mineira não me deixou jogar por conta disso, não por conta de preconceito.

O problema é que os dados não batiam, a gente precisava alterar isso na CBF. Eu consigo fazer os contatos com a CBF, envio tudo pra eles lá de documento, exame médico, tudo que precisa, tudo conforme o Comitê Olímpico. E aí eles liberam. Um mês depois respondem para a federação mineira que estou liberada pra jogar qualquer competição Profissional.Foi aí que pensei ‘cara, se eu estou liberada para jogar agora profissional, eu não vou me contentar com amador’.

Mesmo com 38 anos e seja bem complicado fisicamente falando, né? Mas sinceramente nem é tanto, porque eu estou em uma forma boa e eu conseguiria até jogar mais alguns anos. E foi aí que começou a busca por um time profissional e aí eu cheguei aqui no Nacional. Eles fizeram uma seletiva, fui sem falar que era trans, só vim fazer. Fui a melhor em campo nos dois dias de seletiva e passei. Só depois de me contratarem é que eu falo que eu sou trans. Pensei que eles até tinham imaginado. Rolou um diálogo muito honesto com a diretoria que resolveu me apoiar e comprar a briga”.

Você citou a Tifanny Abreu, jogadora de vôlei pelo Osasco Esporte Clube, como uma precedente que abriu as portas para outras pessoas Trans no esporte. Quais outras pessoas te inspiram na sua carreira?

“Eu acho que, se for falar de pessoas da mídia, seria somente a Tifanny mesmo porque ela meio que abriu a porta e mostrou que existe a possibilidade. Eu não tenho nenhuma jogadora assim que eu tenha como ídolo. É claro que eu sou muito fã de algumas, como a Cristiane e a Marta, mas como referência e como influência só a Tifanny. Inclusive conversei com ela em 2019, quando eu ia tentar jogar profissionalmente e ela me respondeu várias coisas sobre o tratamento, sobre como ela se sentia e se ela achava que ia dar certo ou não. E isso me motivou e me ajudou a continuar.

Depois do exemplo dela, eu fiquei pensando que eu quero ser o próximo exemplo e isso me motivou a querer ser mais. Assim como ela conseguiu ser uma referência no vôlei, seria muito legal a gente ter alguém no futebol também”.

Como está sendo para você esse momento de retomada e como você está se sentindo durante os jogos, com o treinamento?

“É uma experiência isso aqui pra mim, né? Porque assim, a gente mora numa casa aqui na cidade com 18 jogadoras do time na mesma casa. Todas são de fora, você tem meninas de todas as partes do Brasil aqui. A rotina de treino é muito intensa, duas vezes por dia. Às vezes faz um terceiro tempo que é a fisioterapia, então é muito desgastante.

Eu tenho uma vida estável e eu estou aqui para abrir mão disso por alguns meses, o que é ruim pra minha família e a gente está lidando com isso da melhor forma possível. Mas eu me enfiei nisso para conseguir cumprir essa ‘missão’, como eu chamo. Não preciso ir até o final, não preciso ficar dez anos fazendo isso, mas eu vou abrir essa porta, daqui a pouco vai vir outra e vai continuar.

Eu me coloquei à disposição para fazer isso, que é algo que eu queria fazer. A rotina é bem complicada. Muito desgastante, muito cansativo e você se machuca todo dia. Antes do jogo da estreia, por exemplo, contra o Uberlândia, eu tive uma lesão três semanas antes que ela tinha uma expectativa de melhora de seis semanas e o jogo era em três. E aí eu fiz fisioterapia por uns 18 dias de manhã e de tarde todo dia, só fiz terapia por uns 15 dias sem treinar, e ninguém sabe disso, não tinha falado isso para nenhuma mídia ainda. E voltei a treinar dois dias antes do jogo para conseguir jogar. Joguei com dor, mas joguei. E foi o melhor jogo até agora do time”.

A jogadora fez dois gols no empate por 3 a 3 com o Uberlândia na estreia do Mineiro – Foto: Assessoria NVRB

Quais são suas expectativas para o campeonato?

“A gente está lutando para conseguir uma vaga para a série A3, que vai colocar a gente no mapa do Brasileiro. Um time que foi montado em dois meses e que tem um objetivo claro, ficar em quarto lugar. E quando você fica em quarto lugar, você ganha essa vaga do brasileiro. E é claro, quando você chegar em quarto, você vai jogar uma semifinal e seu horizonte aumenta, você vai querer ganhar no final. Mas nosso objetivo é muito certo, ficar em quarto e tentar essa vaga. Porque aí o time ganha mais investimento, a cidade é mais vista, e as coisas acontecem para o time. E as jogadoras que estão aqui são mais valorizadas também.”

Qual vai ser o seu maior legado para essa geração de mulheres que estão entrando no esporte, para essa galera nova que está entrando também, o que você espera que seja o seu maior legado?

“Eu acho que tem dois legados mais importantes para mim. O primeiro com certeza é abrir essa discussão. Eu falei até com as meninas aqui que no dia que começou o primeiro jogo, quando a juíza apitou o início do jogo, eu olhei para o campo todo ao redor e eu era só mais uma dentre as 22 que estavam lá. E isso é uma coisa que é muito importante. Naquele momento era normal eu ser só mais uma em campo e que se normalize isso, de ter uma atleta trans ali e ser só mais uma. Então para minhas colegas, trans, meninas, poderem ter uma referência, acho que vai ser muito importante.

Eu acho que uma das coisas mais importantes é tipo assim, lá no seu bairro, por exemplo, tem uma menina trans de 12, 15 anos que quer jogar bola na rua e não deixam ela jogar. Assim como eu sei que os ciclos se fecharam pra mim com 20 anos, essas meninas também se fecham e não aparecem. Na escola ela não pode jogar porque é só preconceito. Enfim, talvez se as pessoas verem que tem uma jogadora de futebol profissional bem sucedida, então, pô, é legal ter uma atleta trans. Assim, lá no bairro a coleguinha trans também passa a jogar. E aí, daqui cinco, dez anos essa menina joga futebol de verdade e pode jogar profissionalmente.

Porque eu sempre falei com a minha esposa esse lance que talvez não tenha nenhuma outra atleta trans no futebol tão cedo depois de mim, mas talvez lá nas escolas começarão a ter e até mesmo no bairro elas começarão a praticar mais esportes. E talvez tendo exemplos, tendo a Tifanny lá no vôlei e tendo eu aparecendo um pouco no futebol, e outras aparecendo em algum esporte, essas portas vão começando a se abrir. A gente está conseguindo introduzir as pessoas na sociedade.”

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Autor: Laboratório de Comunicação e Esporte

O Laboratório de Comunicação e Esporte é uma disciplina de graduação ofertada anualmente no Departamento de Comunicação Social (DCS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pela professora Ana Carolina Vimieiro.

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