CABULOSAS EM FOCO: como a transformação em SAF alterou as dinâmicas do futebol feminino no Cruzeiro

Equipe mineira trabalha para se posicionar entre as grandes potências do futebol feminino no Brasil e os esforços refletem nos bons resultados em campo

Por: Gabriela Sousa (@sousagabizx)*

Ao final de 2021, a compra do Cruzeiro pelo ex-atacante Ronaldo Nazário elevou as esperanças do torcedor que assistia o clube enfrentar um momento de turbulências financeiras e administrativas. A expectativa, naquele momento, era de que o Fenômeno obtivesse êxito em renegociar as dívidas do time mineiro e conseguisse elevar seu patamar competitivo a partir de investimentos e contratações significativas. Em 2024, a chegada de Pedro Lourenço como novo dono do clube circunda a manutenção desses princípios e a intensificação da projeção competitiva da equipe, mas sem ignorar o caminho pavimentado nos últimos anos. 

Na equipe feminina, ainda na gestão de Ronaldo, a primeira mudança expressiva foi a chegada de Kin Saito, em maio de 2022, para o cargo de diretora de futebol. Kin anteriormente havia trabalhado como coordenadora de futebol feminino do Grupo R9, fundado pelo Fenômeno e revelou, em entrevista ao site Dibradoras, que grande parte da motivação para assumir ao cargo de liderança no Cruzeiro veio do apoio fornecido pela própria gestão, e do entendimento demonstrado pelo clube de que a modalidade é também um pilar estratégico de extrema importância.

De acordo com Kin, o ideal de sucesso de um clube “depende muito mais da mentalidade do grupo de trabalho, da noção do que se considera curto, médio e longo prazo e, principalmente, do planejamento e da responsabilidade”. Diante disso, a trajetória do time feminino do Cruzeiro é fundamentada com base em um planejamento extenso, centrado nos princípios de colaboração, integração e representatividade. A partir dessa estruturação, a coordenação administrativa formaliza uma base sólida de gerenciamento, capaz de orientar as decisões e movimentações de nível técnico e profissional.

“Ter chegado sem precisar convencer ninguém da importância do futebol feminino já faz o Cruzeiro largar na frente em termos de mentalidade. O clube tem o entendimento de que o futebol feminino é um pilar estratégico, assim como outras áreas”, afirmou Kin Saito em entrevista às Dibradoras.

O trabalho realizado pelo clube é construído a partir da definição de metas de curto prazo, com foco nos objetivos para a temporada que se inicia, mas também projetando um curso mais longo, com destaque para a profissionalização dos contratos e da estrutura, além da consolidação de uma estabilidade financeira. Esses objetivos estão alinhados com o panorama proposto pela gestão, de impulsionar a consolidação da identidade da instituição e favorecer uma percepção positiva do planejamento estratégico do grupo. 

Crédito: Staff Images/Cruzeiro

Como consequência, a atividade performada em campo sob comando do técnico Jonas Urias, tem representado a preparação extracampo a partir da manifestação dos princípios de equilíbrio, constância e harmonia, incentivados pela gestão no decorrer dos últimos anos.

Em entrevista para o site Trivela, o atual treinador revelou que, diante das propostas de outros grandes clubes, “o Cruzeiro surgiu como um clube que deu mais perspectiva de crescimento, dentro da mentalidade que tem e das ações que pratica para o desenvolvimento e evolução do futebol feminino”, e esse fator foi essencial para sua escolha de aceitar comandar o time. Desde a chegada de Urias em setembro de 2023, as Cabulosas já conquistaram um Campeonato Mineiro e chegaram à final da Supercopa Feminina 2024.

Mudanças estruturais positivas para as Cabulosas

No quesito estrutural e espacial, a transferência do Centro Esportivo da PUC (Pontifícia Universidade Católica) para a Toca da Raposa, local de treinamento da equipe masculina e dos times de base do Cruzeiro, permitiu que as atletas obtivessem melhores condições tanto para acompanhamento físico quanto para a realização de treinos e condicionamentos corporais em espaços mais tecnológicos.

Levando em consideração os obstáculos estruturais enfrentados por outros times na disputa do Brasileirão Feminino, o reconhecimento do processo de integração a um espaço que dispõe de instalações próprias para o desenvolvimento das atletas é essencial para o amadurecimento da equipe. Da mesma forma, o acompanhamento próximo de uma gestão que comparece aos treinos e partidas, transparece uma relação de confiança no trabalho sendo realizado, respeito e apoio às jogadoras.

As transformações de ordem comunicacional também são de grande significância na trajetória do Cruzeiro como Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Em 2022, foi oficializada a criação de um perfil no Instagram para o time feminino com o objetivo de manter o torcedor atualizado sobre a rotina e o dia-a-dia das Cabulosas. Diariamente são publicados conteúdos relacionados aos treinos, à preparação física, atualização de jogos e divulgações publicitárias.

A proposta é fortalecer os ideais propostos pelo clube, refletindo seus valores e buscando maior proximidade com a torcida e com parceiros. Além disso, a iniciativa é também um espaço de expressão para as atletas e favorece o sentimento de familiaridade com o elenco. A partir do material produzido, é possível obter uma visão geral dos bastidores da preparação do time, receber informações atualizadas sobre as partidas, além de acompanhar os exercícios rotineiros de integração entre as atletas.

No Instagram (@cruzeirofem), a torcida pode acompanhar os bastidores dos jogos e dos treinos das Cabulosas.

Essas dinâmicas, além de estarem presentes nos treinos e nos vestiários, são também estimulados e executados pela mesa diretora logo no processo de familiarização com o clube e ao início de novas temporadas. Durante entrevista para o “No Ataque”, Kin Saito revelou que o processo de apresentação antes do início da jornada esportiva inclui uma apresentação dos projetos do clube, junto com a exposição de uma linha do tempo que cobre toda a existência do time feminino.

Além disso, as atletas são convidadas a ajudar a escrever metas de acordo com aquilo que elas acreditam ser possível de ser alcançado em equipe e a motivação necessária para a realização de tais feitos. A ação é um diferencial que busca fortalecer o espírito de equipe e reforçar a identidade do clube. Sendo assim, a mentalidade do grupo é construída com base na ideia da força do coletivo, fator que incentiva a aproximação das atletas e entrosamento dentro de campo.

Para além dos investimentos aplicados na equipe principal, o Cruzeiro Feminino também pretende anunciar, em breve, a apresentação de seu time de base. A ideia é incentivar a profissionalização das jogadoras desde a infância, proporcionando para jovens meninas a oportunidade de desenvolver seus talentos e seguir carreira como atleta. A iniciativa se encaixa nos moldes de desenvolvimento sustentável praticado pelo clube, visando não apenas promover avanços de forma consciente e bem planificada, mas também ampliar a base de talentos para o prosseguimento do futebol nacional e ampliação do nível técnico competitivo. 

A partir das movimentações administrativas apresentadas, o Cruzeiro formaliza a visão de um clube com o ideal de desenvolvimento focado em uma gestão sólida e ao mesmo tempo acessível, que trabalha em elevar cada vez mais seu nível de protagonismo nas competições a partir de uma perspectiva clara sobre quais recursos adotar dentro da realidade atual do grupo.  Além disso, o exercício da representatividade é fundamental tanto para as atletas quanto para os torcedores, que protagonizam simbolicamente a essência da instituição.

Créditos: Reprodução/Gustavo Martins/Cruzeiro

Mesmo com a mudança na gestão, torcida segue com boas expectativas para a modalidade

Por parte da torcida, a estudante Anna Júlia Fonseca expressa admiração pela expressividade das atletas e destaca a entrega do elenco atual como fator determinante no estabelecimento de um vínculo de apoio. De acordo com Fonseca, a atuação das jogadoras em campo representa o que é “ser Cruzeiro”. Além disso, a torcedora destacou a importância de ver atletas que se posicionam abertamente sobre questões como a LGBTfobia.

“As atletas são excepcionais, atuam de maneira responsável e jogam com raça, o que representa ainda mais o ‘ser Cruzeiro’. Me sinto totalmente representada, é muito difícil crescer em um país onde o futebol é representado e bem avaliado somente entre homens. Quando mais nova não tínhamos o time feminino para nos sentirmos ainda mais integradas, agora com todas as movimentações e o público voltado mais para as meninas é muito bonito de se ver, além da luta obviamente pelo nosso espaço dentro do esporte. Além disso, me sinto representada pela sexualidade exposta das garotas, é muito difícil no Brasil conviver com a homofobia e muitas delas não têm medo de demonstrar essa luta também em campo, como é o caso da Byanca”, destaca a torcedora.

Em relação à gestão de Pedro Lourenço, Anna Júlia se diz confiante e espera mais investimentos por parte do empresário: “Conseguimos trazer alguns bons resultados desde que Ronaldo assumiu, [mas] ainda assim precisávamos de mudanças, então creio que Pedro pode vir a gerar grandes mudanças, tanto na infraestrutura, como a melhoria dos setores de treinamento (…) isso contando com preparadores físicos de alta qualidade para a melhoria do nível do futebol feminino e o investimento para a janela de contratações. (…) Acaba que um time não depende somente de um milagre da gestão técnica, precisamos expandir muito o olhar do time feminino para crescer e tornar um time de tradição, porque a raça nós já temos!”.

Na quinta posição do Campeonato Brasileiro A1 2024, o Cruzeiro soma 21 pontos, com 6 vitórias, 3 empates e 3 derrotas. As Cabulosas estão em busca da classificação para a próxima fase da competição pela segunda vez consecutiva – no ano passado, elas caíram nas quartas de final após duas derrotas para o Corinthians. Para alcançar esse objetivo, elas precisam continuar somando pontos nas três últimas rodadas do campeonato, frente ao Grêmio, Corinthians e Bragantino.

*Matéria revisada por Rafaela Souza (@rafarelasouza).

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Autor: revistamarta

A Revista Marta (https://revistamarta.com/) é um projeto de ensino e extensão do Departamento de Comunicação Social (DCS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cujo objetivo é produzir um jornalismo esportivo engajado, explicitamente antimachista, antirracista, anti-capacitista e anti-lgbtfóbico, buscando, nesse sentido, um nível maior de igualdade em termos de espaço dedicado a diferentes modalidades, atletas, fontes e temáticas. Produzida desde 2020 por estudantes dos cursos da Comunicação, a Revista Marta foi finalista do Expocom 2021 – Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação, prêmio destinado aos melhores trabalhos experimentais realizados exclusivamente no campo da Comunicação. É coordenada pelo Coletivo Marta - Grupo de Pesquisa em Comunicação e Culturas Esportivas (https://coletivomarta.org/).

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