O caos que fez o coletivo: conheça a Desorganizada Cabulosa

Torcida organizada do Cruzeiro de garotas hoje conquista espaço nas arquibancadas, quebra estereótipos e fortalece o futebol das mulheres

Por Maria Polito e Soraia Carvalho, estudantes de Jornalismo da UFMG

Nos gramados de Minas Gerais, o futebol é tradição. Há anos, a paixão pelo esporte move milhares de torcedoras e torcedores às arquibancadas dos estádios para impulsionar seus times. A partir desse amor e entusiasmo, nasceu, em 17 de agosto de 2024, a Desorganizada Cabulosa, a primeira torcida organizada focada apenas no time feminino do Cruzeiro. 

No dia 7 de setembro, ainda do lado de fora da Arena Independência, já era possível perceber a festa. Torcedoras balançavam bandeirões no meio da rua e batuques, cantos e muita animação tomaram conta do ambiente antes do primeiro jogo da final do Campeonato Brasileiro de 2025. Entre sorrisos e muita expectativa, era possível identificar quem estava responsável por aquele ritmo. Uma hora antes da bola rolar, era a Desorganizada Cabulosa, do Cruzeiro de garotas, que já comandava o espetáculo fora de campo.

Com a bola rolando, o espetáculo apenas aumentou. Durante os noventa minutos, a ala direita do setor especial Pitangui foi dominada pela torcida organizada, que entoava cânticos, vibrava e celebrava cada lance. Junto às demais torcedoras, as integrantes da Desorganizada empurraram as jogadoras do começo ao fim da primeira etapa da final do Campeonato Brasileiro.

Natália Simões, médica de 30 anos, fundadora e presidenta da Desorganizada Cabulosa, tem história com o Cruzeiro há anos. Desde criança, compartilha a paixão do pai por futebol e pelo Cruzeiro. Durante a faculdade de medicina, cursada no Vale do Aço, percorria quilômetros para chegar a Belo Horizonte nos dias de jogos. Já familiarizada com o clima da nação azul em competições masculinas, a torcida do futebol feminino foi fonte de desagrado para a cruzeirense. “A diferença era absurda, não parecia a mesma coisa, não parecia o mesmo Cruzeiro jogando. E isso me incomodava muito porque grande parte da paixão que me movia pelo esporte, pelo futebol e pelo Cruzeiro era a torcida”, relembra.

É nesse cenário de insatisfação que surge a Desorganizada Cabulosa. Em busca de mudanças, Natália recorreu à sua vivência universitária. Com a experiência adquirida na bateria da atlética em que participava, sabia como reunir instrumentos e dar o primeiro passo para criar uma identidade sonora e visual nas arquibancadas. Com dinheiro do próprio bolso, a jovem fez algumas bandeiras e comprou instrumentos usados com a bateria da universidade. Rapidamente, o movimento cresceu, deixando de ser apenas materiais e tornando-se uma identidade. Para a presidenta da torcida, a grande diferença foi que todas compraram a causa e “foram junto” com a ideia.

Natália Simões. Foto: Dan Costa

Foi nesse processo coletivo, inclusive, que surgiu a ideia do nome Desorganizada Cabulosa. A escolha não foi aleatória: representava tanto o desejo de se desvincular da imagem tradicional das torcidas organizadas, muitas vezes associadas à violência, quanto a vontade de afirmar a identidade própria do grupo.

“A gente precisava de um nome, e eu não queria que fosse torcida organizada. Esse nome carrega um estigma muito grande no país. Então a ideia do ‘Desorganizada’ veio disso, e o ‘Cabulosa’ brotou naturalmente, como forma de marcar que éramos do feminino”, explica a médica.

Hoje, a torcida que acompanha o time feminino em todos os jogos possíveis é formada majoritariamente por mulheres e famílias, muitas vezes acompanhadas de crianças. Ao chegar perto do grupo em dias de jogos, pode-se encontrar um público bastante familiar. “Mães, pais e crianças que são parte da torcida, que tão em todos os jogos com a gente, inclusive nas viagens para São Paulo. A gente foi com algumas várias crianças nessas duas últimas viagens e essa agora da final não vai ser diferente. A molecada vai junto.”, descreve Natália.

As crianças que entram em campo de mãos dadas com as jogadoras podem ser vistas com a Desorganizada Cabulosa nas arquibancadas. Ainda que diversificado, a Desorganizada possui um perfil característico, o de mulheres apoiando mulheres. É uma visão que ilustra a importância do esporte como cenário de integração e cultura para um público que, muitas vezes, não se sente confortável ou seguro em partidas do futebol masculino.

Pertencimento e identidade

Para Talita Dantas, torcedora e integrante da bateria da Desorganizada Cabulosa, a presença da torcida faz toda a diferença. A arquiteta é um exemplo da sensação de pertencimento a partir do movimento. Fã presente nos estádios desde antes da criação da Desorganizada, a cruzeirense já acompanhava os jogos das Cabulosas quando percebeu uma mudança nas arquibancadas. Para ela, o crescimento da torcida do futebol de garotas em 2025 era perceptível desde o ano anterior, considerando o projeto de investimento do clube em novas jogadoras e no fortalecimento intracampo. 

Concomitantemente ao desenvolvimento do time no gramado, a torcida jogou junto, mas ainda dependia da voz para se fazer presente, com instrumentos disponíveis apenas em jogos importantes, como as finais do Campeonato Mineiro, em que as torcidas organizadas do Cruzeiro de garotos apareciam para apoiar. Ainda assim, a torcida trazia muitas características das arquibancadas masculinas, como os cânticos dos jogos masculinos. Com a chegada da Desorganizada, a torcida recebeu uma nova identidade a partir de bandeirões com imagens das jogadoras, músicas criadas especialmente para as atletas em campo e a inserção de instrumentos musicais próprios. Dessa maneira, a nação azul do futebol feminino exibe individualidades e unidade de modo desvinculado ao modo de torcer do time masculino. A presença da Desorganizada Cabulosa é prova da necessidade de que o futebol feminino tem histórias diferentes do masculino, possuindo autenticidade e narrativas particulares.

Foto: Soraia Carvalho 

Homens chegam para somar, mas tem que respeitar

Mesmo que seja importante a criação de uma torcida específica, a presença dos torcedores do Cruzeiro masculino é também essencial. As Cabulosas são um time de mulheres para, principalmente, mulheres, mas que são, do mesmo modo, uma subdivisão do Cruzeiro Esporte Clube, um dos times de futebol mais tradicionais do Brasil e que conta com milhares de torcedores e torcedoras. Surge, então, um questionamento: por que o Mineirão lota em dias de semana para o Campeonato Brasileiro masculino, mas, em pleno 2025, o número de pessoas nos estádios para jogos femininos ainda é limitado? A torcida celeste já provou na final do Brasileirão feminino, com o recorde de público de 19 mil pessoas no Independência, que tem paixão de sobra pelo futebol de garotas.

Nos últimos meses, com a campanha positiva do time, homens vindos das organizadas do masculino também passaram a integrar o grupo. O número de torcedoras frequentando os jogos do time feminino aumentou consideravelmente, e a presidenta da Desorganizada destaca a contribuição deles não só nas arquibancadas, mas também na logística. Mais habituados à rotina das torcidas do masculino, eles trazem experiência com organização de viagens, materiais e demais demandas, algo que fez diferença especialmente nos jogos de mata-mata.

A chegada foi recebida com naturalidade, mas acompanhada de uma condição essencial: respeitar os valores do coletivo. A prioridade da Desorganizada é manter um espaço seguro, livre de práticas machistas ou comportamentos hostis. Segundo Natália, esse cuidado tem funcionado.

“Eles têm às vezes uma abordagem diferente, mas ao mesmo tempo são meninos que me procuram muito. Assim, ‘Nati, tal coisa eu posso fazer? Ô, Nati, tal música eu posso puxar? Ô, Nati, fulano falou tal coisa e eu acho que não foi legal’. Eles entendem que aqui é diferente, que certos comentários e comportamentos não cabem. Eles mesmos têm se regulado.”

Relação com o Cruzeiro e com as atletas

A proximidade com o Cruzeiro foi outro fator decisivo para o crescimento da Desorganizada. Mesmo sem CNPJ, a torcida já recebe tratamento de organizada, com apoio em ações e acesso a informações logísticas para recepções e treinos abertos. Natália relata que o clube sempre esteve de portas abertas para a organização, o que facilita muito o trabalho e demonstra que a importância do movimento para o time feminino é reconhecida. Para o jogo de volta da final do Brasileirão de 2025, Pedrinho, dono do Cruzeiro, disponibilizou um ônibus para a Desorganizada Cabulosa, o que, para Natália, é um reconhecimento do trabalho feito no último ano. Mesmo que a Desorganizada não seja cadastrada como torcida organizada no clube, a importância de sua presença é valorizada.

A relação com as atletas também se destaca. Para a presidenta, a postura da camisa 10, Byanca Brasil, é exemplo desse vínculo. A atleta, após o final de cada jogo, faz questão de ir até a torcida, seja vitória ou derrota, e pergunta os nomes das torcedoras e se gostaram da partida. “Isso aproxima demais. Ver jogadoras desse nível dando essa atenção é muito especial.”, afirma Natália.

Nos jogos decisivos do Brasileirão, a Desorganizada mostrou sua força de mobilização. Para a final em São Paulo, três ônibus foram lotados em poucas horas, além de torcedoras que optaram por viajar por conta própria. A logística foi organizada de forma colaborativa, com rateio e doações via Pix. “É um caos organizado, mas funciona. A gente abre lista, fecha rápido e vai dando um jeito. O importante é estar lá com o time”, explica Natália. Em campo, a torcida garantiu o espetáculo. Bandeiras, cantos e bateria sustentaram a festa durante os 90 minutos. Ainda que as Cabulosas não tenham conquistado o campeonato, Natália afirma que a temporada foi um sonho ao considerar o crescimento exponencial do futebol feminino e da presença da nação azul. 

Foto: Soraia Carvalho 

Falta de organização e valorização do futebol feminino

O movimento persiste e luta pela valorização devida do futebol feminino, que cresce, mas que ainda tem muito mais potencial. A falta de organização da própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem sido um obstáculo constante para as torcedoras do futebol feminino. Alterações repentinas de locais e horários de jogos, quando muitas vezes a maioria já está com passagens compradas, tornam a experiência de acompanhar os times um verdadeiro desafio. 

A presidenta da Desorganizada relata, por exemplo, que precisou mudar planos de viagem em cima da hora em diferentes ocasiões ao longo desta temporada, como na Supercopa, quando o duelo entre Bahia e Cruzeiro teve o local alterado duas vezes três dias antes do jogo. Em outra situação, após gastar cerca de R$2 mil em passagens aéreas para São Paulo, descobriu que a partida contra o Palmeiras seria com portões fechados na Arena Barueri. Para Natália, a CBF ainda não compreendeu que há uma torcida disposta a viajar e apoiar, e que o Campeonato Feminino precisa ser tratado com seriedade e profissionalismo.

Tais episódios reforçam ainda mais a percepção de que a CBF ainda não trata o futebol feminino com a seriedade necessária, seja na gestão das competições, seja na promoção da igualdade entre homens e mulheres. Se, dentro de campo, atletas e torcedoras lutam diariamente contra a invisibilidade e o descaso, fora dele a entidade segue buscando escapar de medidas que poderiam garantir maior transparência e equidade, como evidencia a suspensão da obrigatoriedade de divulgar relatórios de igualdade salarial. 

Esse contraste entre discurso e prática também se revela na comunicação oficial: embora o presidente da CBF, Samir Xaud , afirme que o Brasil está preparado para sediar a Copa do Mundo Feminina de 2027, o cotidiano do futebol feminino mostra o oposto. O Brasileirão Feminino começou no dia 22 de março, mas o perfil oficial do torneio no Instagram permaneceu sem atualizações desde 15 de março, quando o São Paulo venceu o Corinthians na final da Supercopa, voltando a publicar apenas em 26 de março, com a tabela da segunda rodada.

Para uma torcida apaixonada como a cruzeirense, que lota o Mineirão em jogos do masculino, os históricos 19 mil presentes na final no Independência são a prova de que o futebol de garotas tem público e futuro. Para Natália, o segredo para o futuro do futebol feminino é o reconhecimento da categoria por diretorias de clubes e pelas organizações do esporte em níveis estaduais e nacional. Apenas dessa maneira, o público poderá abraçar o esporte.

Expediente
Redação: Maria Polito e Soraia Carvalho
Apuração: Maria Polito e Soraia Carvalho
Edição: André Quintão
Coordenação: Ana Carolina Vimieiro

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Autor: Laboratório de Comunicação e Esporte

O Laboratório de Comunicação e Esporte é uma disciplina de graduação ofertada anualmente no Departamento de Comunicação Social (DCS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pela professora Ana Carolina Vimieiro.

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