
Por Amanda Camargos, estudante de Jornalismo da UFMG
A F1 Academy, criada em 2023, vai além das pistas: ela está redesenhando o lugar das mulheres no automobilismo e inspirando uma nova geração a ocupar espaços antes inacessíveis.
A criação da F1 Academy
A F1 Academy, criada em 2023 pelo Grupo Fórmula 1, representa um passo decisivo rumo à inclusão e ao desenvolvimento feminino no automobilismo. Concebida como uma categoria de base exclusiva para jovens pilotos mulheres, tem como missão um projeto que visa formar, capacitar e abrir caminhos para que essas talentos emergentes possam, um dia, alcançar o mais alto nível do esporte a motor, a Fórmula 1.
Com um grid composto por 18 carros e 6 equipes, a F1 Academy vem ganhando relevância e respeito dentro do cenário esportivo. O projeto busca se consolidar como um símbolo de transformação em uma modalidade historicamente dominada por homens. A cada temporada, cresce não apenas em competitividade, mas também em representatividade, resultado que pode inspirar uma nova geração de meninas a sonharem, e lutarem, por um lugar no cockpit.
Esse crescimento vai além das pistas: é um reflexo direto da transformação do automobilismo em um espaço cada vez mais inclusivo. De acordo com a Pesquisa Global de Fãs da F1 de 2025, realizada pela Fórmula 1 em parceria com a Motorsport Network, 23% dos fãs globais já acompanham a F1 Academy, número que salta para 42% entre as mulheres, tornando-a a segunda modalidade mais seguida, atrás apenas da categoria principal, a Fórmula 1. Entre os novos fãs da modalidade, três em cada quatro são mulheres, o que evidencia o papel fundamental da categoria na atração de um público mais diverso.
Outro destaque é o impacto entre os jovens: 37% da Geração Z, que tem entre 15 e 30 anos, e 36% do público mais jovem afirmam acompanhar a F1 Academy, o que indica um interesse crescente por narrativas inclusivas e por maior representatividade no grid.
A experiência de quem vive o esporte por dentro
Além de analisarmos os dados, também conversamos com Laís Souza, advogada, influencer e apresentadora do programa Cola no Grid, da Band, que é uma resenha pós-corrida da Fórmula 1 nas plataformas digitais da Band, analisando os principais acontecimentos dos GPs. Como mulher inserida diretamente nesse universo, Laís compartilha uma perspectiva construída não apenas a partir da paixão pelo esporte, mas também da vivência constante em espaços onde a presença feminina ainda é, muitas vezes, questionada.

Ao falar sobre a F1 Academy, Laís expressa um sentimento forte e simbólico: “Quando eu vejo uma mulher na F1 Academy é um sopro de esperança, por muito tempo mulheres não eram aceitas dentro do automobilismo, tivemos uma categoria, outra categoria feminina, que acabou não evoluindo, isso criou-se inclusive uma falta de expectativa, principalmente para as meninas que pilotam karts e tudo mais”, destaca.
Sua fala resgata uma realidade pouco debatida: durante décadas, meninas apaixonadas por corrida viam suas trajetórias interrompidas ou desacreditadas antes mesmo de começarem. A ausência de referências femininas reais no topo do esporte fazia com que a ideia de uma mulher chegar à Fórmula 1 soasse como um sonho distante, ou até impossível. A criação de uma categoria como a F1 Academy não resolve tudo, pois são décadas de descaso com a modalidade feminina, mas representa um marco importante na construção desse caminho.
Laís reconhece esse impacto e enxerga a F1 Academy como um passo necessário na busca por equidade de oportunidades: “A categoria veio para inovar e tentar criar um espaço mais abrangente e mais facilitado às oportunidades para as mulheres”, completa. A iniciativa não apenas incentiva a formação de novas pilotas, como também pode transformar a estrutura do esporte e trazer novas possibilidades de identificação para as futuras gerações.
Para Laís, “a F1 Academy vem para equalizar isso e ter uma oportunidade de ter uma categoria 100% feminina comandada por mulheres, com certeza muda o cenário, abre oportunidades, especialmente nos coloca no papel de representadas dentro do grid”. A representatividade, para Laís, não é apenas simbólica, ela impacta diretamente a forma como as mulheres se veem dentro do universo do automobilismo. E isso vai além das pistas. Nas arquibancadas, nas redes sociais, nas transmissões e discussões sobre o esporte, a presença feminina também tem crescido de forma expressiva.
Ela comenta como essa mudança é visível no perfil do público que acompanha automobilismo: “Hoje um público bem grande é o feminino, e está muito equiparado ao público masculino. Ano passado, em Interlagos, se eu não me engano, foi uma proporção de 51% de homens e 49% de mulheres. Eu lembro que a primeira vez que eu fui para Interlagos a diferença era muito, muito grande, era muito discrepante”.
Esse dado revela que o automobilismo deixou de ser um espaço exclusivamente masculino também no olhar de quem consome o esporte. No entanto, Laís também reforça que, apesar do avanço, o machismo ainda está presente. Em muitos casos, ele se revela com mais força justamente quando mulheres ganham destaque e passam a ocupar posições de protagonismo, algo que ainda incomoda certos setores da comunidade do automobilismo: “Olha, a sensação de ver mulheres competindo em esportes de alto nível, que por muito tempo alegavam que fisiologicamente as mulheres não eram passíveis de competir, é a quebra de um tabu gigantesco e de uma evolução da própria ciência em si, porque a ciência por muito tempo era a base para fundamentar um discurso completamente machista, sendo que tem as mulheres atletas de alto nível, que trazem muito mais resultados do que homens”, explica.
A crítica de Laís toca em uma questão essencial: durante muito tempo, foi o próprio discurso “científico” que sustentou uma exclusão disfarçada de lógica. Em outros esportes, isso se manifestou com proibições e exclusões, como o caso do futebol no Brasil que, entre 1941 e 1979, esteve proibido para a prática de mulheres por meio do Decreto-Lei nº 3.199. Hoje, com estudos mais atualizados e exemplos concretos, essa barreira começa a ruir, mas ainda encontra resistência em estruturas que seguem dominadas por uma lógica masculina e, muitas vezes, conservadora.
“Hoje com certeza as coisas têm evoluído, mas ainda é um esporte de predominância que a grande cúpula ainda é muito machista. (…) Então com certeza eu acho que é principalmente uma construção estrutural, histórica, uma evolução principalmente da parte da chefia da F1, da FIA, da Liberty, para que cada vez essas mulheres sejam mais incluídas, e principalmente o respeito do próprio meio em receber mulheres dentro do esporte, não só dentro de um carro, mas também nas redes sociais, dentro dos paddocks, enfim, esse tipo de pensamento que eu tenho sobre o assunto hoje”, aponta Laís.
A fala de Laís evidencia que o desafio não está apenas em formar pilotos ou aumentar os números, mas em transformar o ambiente para que ele seja verdadeiramente acolhedor e respeitoso com as mulheres, seja nos carros, nas câmeras, nos microfones ou nos bastidores. Mais do que um debate sobre igualdade de gênero, o que está em jogo é o futuro de um esporte que só tem a ganhar ao ampliar suas possibilidades e abraçar a diversidade.
Uma voz feminina dentro da universidade e do automobilismo
O impacto da F1 Academy vai muito além dos números de audiência ou dos avanços técnicos. Ele se revela, principalmente, no modo como transforma o olhar de jovens mulheres sobre o que é possível dentro do automobilismo. É o caso de Anna Catharina, estudante de Engenharia Mecânica na UFMG, que acompanha a categoria e se reconhece nas histórias que estão sendo escritas no grid.

Para ela, ver mulheres ocupando esse espaço tão simbólico e, por tanto tempo, fechado, desperta sentimentos como esperança e orgulho. “Eu fico orgulhosa por elas conseguirem chegar lá e feliz como espectadora e mulher de que elas estão realizando um sonho e inspirando cada vez mais meninas a entrarem para o esporte também, não só como pilotas, mas como mecânicas e engenheiras”, aponta.
Anna destaca que o talento e a capacidade devem ser os únicos critérios que importam, e ver mulheres acelerando nas pistas é uma prova viva disso: “(…) essa ideia de que homens e mulheres não podem pertencer a um mesmo espaço é ultrapassada e elas estarem na pista demonstra que as mulheres conseguem fazer a mesma coisa que os homens, que o gênero de uma pessoa não importa e sim a capacidade e talento dela”, completa a estudante.
No entanto, ela ainda percebe que existem alguns percalços e que essa construção ainda continua sendo desafiadora. Anna compartilhou que, por muito tempo, sentiu que o automobilismo “não era para ela”, especialmente em ambientes presenciais, onde o público ainda é majoritariamente masculino e pouco receptivo à participação ativa de mulheres nos debates. “A ideia de uma mulher entender ou questionar ainda é estigmatizada”, afirma.
Quando vê mudanças acontecendo, como a criação da F1 Academy, Anna define o sentimento em uma palavra: orgulho. Um orgulho que vem de perceber que o que antes era inalcançável, hoje começa a se tornar realidade: “depois de tanto tempo começamos a ver mulheres em lugares que muitas mulheres das gerações passadas nem sonhavam em poder ver e isso demonstra toda a resiliência para lutar por um espaço extremamente dominado por homens ainda hoje”, destaca.
Ela também acredita que a categoria pode influenciar profundamente as próximas gerações, não só de pilotas, mas de meninas que buscam, em qualquer área, referências femininas fortes. O exemplo de Rafaela Ferreira, pilota brasileira que compete em alto nível na categoria, é citado por ela como símbolo dessa transformação: “Ver uma mulher brasileira disputando um campeonato mundial inspira meninas a enxergarem que podem ser o que quiserem”.
Mas para esse novo cenário se consolidar ainda existem alguns entraves. Anna observa que a cobertura da mídia é escassa, muitas vezes restrita a páginas independentes ou perfis gerenciados por mulheres nas redes sociais. “Eu vejo a mídia cobrindo muito pouco os eventos da F1 Academy, normalmente as informações vem atráves de páginas do Instagram gerenciadas por mulheres que tendem a dar mais visibilidade para o assunto, além de que, o público que realmente assiste a F1 Academy é baixíssimo e tende a ser o público feminino”.
E o preconceito, muitas vezes vindo por parte dos homens, ainda é presente, minando parte do avanço da categoria: “Muitos homens ainda menosprezam a pilotagem das meninas (…) essa é a maior oportunidade que elas têm para se desenvolverem e ao invés de apoiarem ficam menosprezando todo o evento”, pontua, reconhecendo que essa é a maior chance que elas podem ter, por historicamente terem tido tão poucas.
Para ela, a mudança só será plena quando houver continuidade na trajetória dessas mulheres dentro do esporte. A F1 Academy, hoje, atua como uma espécie de Fórmula 4, mas poucas meninas conseguem fazer a transição para a Fórmula 3 ou outras categorias de ponta. “Há muitas coisas que precisam melhorar”, resume.
Ainda assim, ela acredita que o futuro pode ser mais inclusivo, desde que os caminhos continuem sendo abertos: “muitas mulheres estão realizando o sonho de poderem trabalhar com automobilismo, e isso, pra mim, é a coisa mais importante que a F1 Academy pode oferecer”, completa.
A visão dos fãs: o olhar da nova geração
Henrique Rodrigues, estudante de Engenharia Mecânica na UFMG e grande fã de automobilismo, também comentou sobre o crescimento da participação feminina no automobilismo: “acho legal que estão dando essa nova oportunidade para elas. Até hoje não é comum ver mulheres no mundo do automobilismo, então isso com certeza chama a atenção”.

Ele também compartilhou sua visão sobre como acredita que o público em geral enxerga a categoria, destacando o ambiente entre os espectadores e os ideais que costumam carregar. Ao ser questionado sobre se acredita que o crescimento da presença feminina no esporte ajuda a quebrar o estereótipo de que existem esportes “de homem” e “de mulher”, afirmou: “acredito que sim. É bem comum ter essa separação no mundo dos esportes em geral. Ultimamente, elas vêm ganhando mais espaço, e essas novas aparições de mulheres participando ativamente como pilotas no automobilismo já servem para deixar aquela dúvida em quem costuma ter esse tipo de opinião”.
Henrique reconhece que, apesar dos avanços, ainda existem barreiras na forma como a mídia e o público tratam as mulheres dentro da F1 Academy. Segundo ele, “ainda é algo muito novo, e não caiu no gosto da maior parte do público, seja por preconceito ou até pelo nível da competição, já que a maior parte do público ainda assiste somente categorias de ponta como Fórmula 1, Indy e WEC (já em números menores). E se a competição não atrai público, ela não será prioridade para a mídia e as emissoras, recebendo horários com menos relevância e visibilidade, e menor atenção da imprensa”.
Para Henrique, a F1 Academy pode ir além das pistas e impactar profundamente a forma como as meninas enxergam seus próprios potenciais e as escolhas que fazem. Ele destaca: “acredito que sim, agora com certeza algo que antes era inalcançável para elas, agora passa a ser uma possibilidade, apesar de ainda ser pequena”. Para ele, essa possibilidade, embora tímida, representa um primeiro passo importante para romper barreiras e expandir horizontes.
Ao acelerar nas pistas, essas jovens pilotas estão, na verdade, pavimentando um caminho para que outras mulheres, engenheiras, jornalistas, mecânicas, fãs, possam também ocupar esse espaço com voz e presença. Ainda existem barreiras, visíveis e invisíveis, e o caminho rumo à equidade é longo. Mas cada volta completada por uma mulher pode significar a mudança.
Expediente
Redação: Amanda Camargos
Edição: Olívia Pilar
Coordenação: Ana Carolina Vimieiro