Resenhando sobre Mulher e Esporte

por Paola Laredo e Viviane Andrade

Qualified (ESPN)

O documentário Qualified, da ESPN Films, que em português significa “classificada”, conta a história de Janet Guthrie, uma automobilista que fez história nos Estados Unidos na década de 1970. Janet foi a primeira mulher a disputar as 500 Milhas de Daytona e as 500 Milhas de Indianápolis, ou Indy 500, a corrida mais importante e mais tradicional da Fórmula Indy, disputada desde 1911.

Qualified, lançado em 2019, nos faz pensar muito ao mostrar as dificuldades e os preconceitos que Guthrie sofreu ao longo de sua carreira unicamente por ser mulher. A história é narrada em detalhes pela própria Janet e por outros personagens envolvidos, enquanto aparecem imagens e entrevistas da época para ilustrar as falas. Bem construído, o documentário consegue prender nossa atenção e nos fazer vibrar com as conquistas dessa pilota que quebrou tantas barreiras e paradigmas no mundo do automobilismo.

Desde nova, ela já não seguia o que era esperado para uma dama daquela época. Apaixonada por aviação, ela se formou engenheira aeroespacial, curso nada comum para mulheres. Queria mesmo era ser pilota, mas nenhuma mulher era contratada para pilotar aviões nas companhias aéreas e nem no exército.

Foto: Reprodução

Guthrie comprou um Jaguar e começou a participar de corridas de carros esportivos. Foi quando se apaixonou pelo automobilismo. E o documentário gira em torno do sonho de Janet em correr as 500 Milhas de Indianápolis. A Indy 500 era um ambiente extremamente masculinizado e conservador, que até 1971 não permitia a entrada de mulheres no pit nem como repórteres. Por conta disso, a possibilidade de Janet disputar essa prova gerou muita discussão e teve uma enorme repercussão. A mídia e outros pilotos homens duvidavam fortemente da capacidade de uma mulher competir em um nível tão alto. É perceptível que alguns até torciam para que ela falhasse e confirmasse essa teoria de que ela não conseguiria.

Outro ponto de suma importância abordado no documentário é a questão dos patrocínios. Ao longo de toda a sua carreira, Janet sempre teve muita dificuldade em conseguir patrocinadores, mesmo sendo uma pilota com um potencial enorme que provou diversas vezes sua competência e capacidade. E esse preconceito fez com que ela tivesse que encerrar sua carreira antes de atingir seu maior objetivo, que era vencer a Indy 500. É com essa crítica que o documentário se encerra.

Por essas e outras, a história de Janet é inspiradora e merece ser difundida. Qualified deixa claro que os desafios que ela enfrentou eram pura e simplesmente por conta do gênero, já que seu talento era inegável. A reflexão que fica é de como há tantas mulheres capazes por aí, mas que acabam não conseguindo conquistar o mesmo espaço que os homens por serem podadas pelo preconceito e pelas dificuldades estruturais que demarcam suas experiências no esporte, como a falta de patrocínio explorada no documentário. Janet Guthrie poderia ter sido a primeira mulher a vencer as 500 Milhas de Indianápolis, mas jamais saberemos.

Nota:

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A moça do Flamengo (Marilene Dabus)

O livro A moça do Flamengo (2019) traz a história da autora Marilene Dabus, que foi uma das primeiras mulheres a cobrir futebol no Brasil, no jornal Última Hora, embora nunca tenha de fato se formado em Jornalismo. Antes de receber o convite do jornal, apareceu na televisão em um programa de perguntas e respostas para falar sobre o seu Flamengo, e desde então passou a ser conhecida como “a moça do Flamengo”.

Antes de ler o livro, a expectativa era grande para saber como foi o início da carreira de Marilene como repórter esportiva. Num mundo machista como o do futebol, em plena década de 1970 – quando a própria prática do futebol por mulheres ainda era proibida no país -, não deveria ter sido fácil esse caminho. No entanto, para nossa surpresa (e decepção), não foi isso que encontramos.

“A moça do Flamengo” é um livro de memórias de Marilene Dabus, no qual ela relata passagens de sua vida como se fosse na medida em que vai se lembrando dos acontecimentos, numa ordem confusa em que, por vezes, nos sentimos perdidos. Ao final de cada capítulo e novamente ao final do livro, várias e várias fotos ilustram situações citadas. O recurso, em geral, é interessante em livros biográficos, já que o leitor não fica só no campo da imaginação, mas nesse caso houve um exagero na quantidade: 142 fotos, num livro de 140 páginas.

Foto: Reprodução/Facebook

No início, Marilene cita brevemente como foi parar no jornalismo esportivo e conta que uma vez, ao entrevistar Pelé durante a preparação para a Copa do Mundo de 1970, ele a questionou: “E mulher entende de futebol?”. Mas parou por aí. Nenhum relato mais sobre preconceitos sofridos nessa trajetória. Provavelmente, ela experienciou, sim, outras situações preconceituosas, mas nem se recorda, porque na época não percebia isso como sendo um problema e normalizava esse preconceito.

É comum notarmos essa dificuldade de mulheres de gerações mais antigas em enxergar problemas que hoje são mais evidentes para nós. Inclusive, esses valores machistas estão enraizados de tal forma que são reproduzidos pela própria autora, que tem dificuldade em se distanciar desse discurso. Ao mesmo tempo, na prática, Marilene foi subversiva ao decidir trabalhar com futebol nos anos 1970 e foi uma figura muito importante na conquista desse espaço pelas mulheres. Enfim, a discussão sobre feminismo e sobre a presença feminina ainda é muito recente e tem muito a avançar. E casos como esse ilustram a importância desse debate, como fizemos ao longo dessa edição da Revista Marta.

Em seguida, Marilene conta ao longo de vários capítulos sua vida dentro do Clube de Regatas de Flamengo, não mais como mera torcedora, mas como funcionária. Devemos confessar que é uma história um tanto quanto cansativa para quem não é torcedor do rubro-negro carioca. Mas, se você for flamenguista, pode ser que te interesse, por trazer algumas histórias de bastidores do clube.

No final, a autora traz um capítulo bem confuso descrevendo como era o Rio de Janeiro nas décadas de 1950 e 1960, durante sua juventude, e depois volta ao início de sua vida para falar sobre relações familiares e amorosas.

Enfim, esperávamos mais. O livro poderia ser melhor estruturado, mais organizado, com a história mais bem amarrada. Mesmo sendo um livro de memórias, teria ficado mais interessante se ela buscasse contextualizar suas vivências. Marilene Dabus se recordava das situações vividas com riqueza de detalhes e poderia ter usado isso a seu favor, mas escolheu apenas enumerar casos, sem se preocupar muito com a conexão entre eles. E, com certeza, também não se preocupou em fazer o livro atrativo para as pessoas que não fazem parte da “Nação Rubro-Negra”.

Nota:

Minas do Hóquei (Netflix)

Les de L’Hoquei (Minas do Hóquei, no Brasil) é uma série teen originalmente lançada pela TV3, da Catalunha, na Espanha. A produção estreou na plataforma da Netflix no dia 20 de setembro de 2019. A trama é constituída por 13 episódios que abordam a vida de sete jogadoras de uma equipe feminina de hóquei sobre patins e a luta delas para salvar o futuro de sua equipe que está ameaçada de ter suas atividades cortadas do clube. A série é bem interessante e mostra o quanto equipes femininas podem sofrer com falta de valorização no universo esportivo.

Lorena, Flor, Emma, Berta, Raquel, Laila e Gina são as jogadoras do Club Patí Minerva e são treinadas por Anna – juntas elas formam o núcleo principal de personagens da trama. Os 8 primeiros episódios levam o nome de cada uma delas e contam um pouco de suas histórias e como elas se interligam. As adolescentes têm características bem diferentes, mas lutam por uma paixão em comum: jogar hóquei.

(Foto: Reprodução/Instagram)

A equipe feminina enfrenta todos os dias as restrições impostas pelo diretor do clube, Enric, que só investe no time masculino e considera o feminino apenas como uma despesa. Dividir o vestiário com os meninos e não receber verbas para a compra de novos equipamentos de treino são alguns dos desafios que elas têm que superar para continuar praticando o esporte.

Além disso, a produção traz para debate temas muito relevantes e faz isso de uma maneira bem atual e entrelaçada no contexto das personagens. Cada atleta tem a vida fortemente marcada por, pelo menos, um dos dilemas de ser mulher em uma sociedade patriarcal e machista. Algumas temáticas importantes abordadas são: aborto, gordofobia, morte de uma pessoa importante, sexualidade fluida, adoção e imigração.

Então, além de buscar a vitória nas competições da equipe, as personagens ainda precisam conciliar a escola, os problemas familiares, as amizades, as paqueras, a identidade sexual e outros problemas de suas vidas. E, para conseguir passar por tudo isso, elas têm umas às outras – uma lição muito importante que a série passa sobre sororidade. Esse conceito de união baseada em empatia e companheirismo entre mulheres é extremamente importante em uma sociedade que estimula a competição entre elas.

Divertida, empoderada e com personagens carismáticas, a série te prende do início ao fim e ainda deixa uma sensação de curiosidade para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos que ficam em aberto nos últimos episódios da primeira temporada. A segunda temporada já está disponível na Espanha, mas no Brasil ainda não temos uma data de chegada à Netflix. Enquanto isso não acontece, aguardamos ansiosas.

Nota:

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