Tatiele Silveira: conheça a técnica que fez história no futebol feminino no Brasil

por Viviane Andrade

Vamos te contar um pouco sobre a história e a carreira dessa profissional que atualmente é a técnica da equipe feminina da Ferroviária. No comando do time de Araraquara, fez uma temporada vitoriosa, sendo campeã do Brasileiro e vice da Libertadores. Além disso, Tatiele foi a primeira e única mulher a ser técnica campeã do Brasileiro Feminino A1.


Tatiele posa para foto na noite em que garantiu o título de melhor treinadora do ano, no Prêmio Brasileirão 2019, da CBF. (Foto: Reprodução/Instagram)

A gaúcha de Porto Alegre sempre teve uma relação próxima com o esporte. Desde a época de escola, Tatiele sempre foi muito ativa e gostava de praticar todo tipo de esporte, mas o futebol sempre foi sua paixão. “Naquela época, o futebol era muito restrito para as meninas. Eu jogava, mas jogava com os meninos, os moleques da turma. Sempre pratiquei muito handebol, atletismo, então eu tive uma vivência bastante interessante, assim, por gostar de ser muito ativa”, conta Tatiele.

Quem a conhece ou a acompanha pelo Instagram pode ver que os anos passam mas Tatiele continua assim, com toda essa energia e amor pela prática esportiva:

A família de Tatiele sempre a incentivou muito. Seu pai gostava bastante de futebol, e ela aprendeu a acompanhar os jogos com ele. Os dois iam em turma assistir aos jogos no estádio junto com amigos e familiares. “Para mim, a experiência de ir ao estádio foi muito bacana. Eu tenho lembranças do antigo Estádio Beira Rio, que era onde meu pai me levava. Tinha uma parte do estádio que ficava bem pertinho dos jogadores e era a parte mais barata, chamava Coreia. Eu sempre pedia a ele para ir lá, e ele nunca queria ir. Depois que eu fui entender o porquê: ficava todo mundo em pé, não era confortável, mas eu queria era ficar bem pertinho do gramado”, lembra. O pai de Tatiele também era atleta amador e, quando saía para jogar, a filha estava lá, sempre o acompanhando e aproveitando para brincar de bater bola com os filhos dos amigos dele.

Sua mãe a matriculou numa escolinha de futebol quando ela tinha 10 anos. Na época, não havia uma turma feminina, e então o pessoal da escolinha quis primeiro fazer uma experiência para ver se ia dar certo. “Não eram nem as crianças, eram mais os pais. O Sul, infelizmente, é um estado que é conhecido às vezes pelo machismo”, conta Tatiele. Após a semana de experiência, a garota ingressou na turma com 20 meninos. E somente 3 anos depois ela conseguiria entrar em uma equipe feminina, quando o Inter fez a primeira escolinha de futebol feminino em Porto Alegre.

Sua experiência como jogadora

Foto: Reprodução/Instagram

Foi no Sport Club Internacional que Tatiele fez sua carreira como jogadora e deu seus primeiros passos como treinadora. Começou no time com 13 para 14 anos e teve suas primeiras experiências em campo nas competições de base. Segundo a ex-atleta, na época, não havia muita divisão de categoria, então com 15 anos ela jogou seu primeiro campeonato brasileiro adulto, em 1997, na cidade de Taubaté. “Se vocês pegarem a história dos campeonatos brasileiros, não era como agora que são vários jogos, era como um torneio. Então íamos todos para uma cidade sede, e todos os times se enfrentavam ali. Era um evento de 25, 30 dias, se tu fosse para a final. Minha primeira experiência eu tinha 15 anos, mas na época não tinha essa. Se tu quisesse jogar e tu se destacasse, tu acabava ingressando na equipe principal”, conta ela.

Tatiele atuando como jogadora pelo Internacional em 1997. (Foto: Reprodução/Instagram)

Tatiele atuou durante 10 anos como jogadora no Inter. Durante esse período, quando ela tinha 17 anos, a jovem finalizou o Ensino Médio e prestou vestibular para Educação Física. Estudar era uma exigência da família. “Enquanto eu jogava, sempre tive uma exigência da minha família: eu podia jogar, mas eu tinha que estudar. Então acabei o Ensino Médio e prestei vestibular pra Educação Física. Não sabia que eu queria ser treinadora naquela época, mas eu gostava de esporte”, conta. A rotina era puxada: treinava de manhã no clube, fazia os estágios obrigatórios de tarde, dentro do Internacional mesmo, e à noite ia para a faculdade. Para Tatiele, a família foi essencial nesse momento. Eles davam todas as condições para ela treinar, estudar e ir em busca do sonho de ser jogadora.

Ela parou de jogar futebol profissionalmente em 2004, mas não abandonou as chuteiras, continuou jogando futsal. “No Rio Grande do Sul, o futsal feminino era muito forte. Hoje, o futebol de campo já se sobressai, mas naquela época tinha equipes de futsal muito marcantes, e eu continuei jogando”, se recorda.

Mais ou menos em 2006, Tatiele já começava a se dedicar mais à parte técnica dos jogos. Dentro da própria faculdade, já havia feito parte de um projeto onde os alunos eram os treinadores da equipe universitária. E, depois de formada, já trabalhava em escolinhas.

“Fazer essa transição é difícil. A gente nunca sabe quando parar, virar treinadora. Então joga um pouquinho, treina um pouquinho”, explica.

Uma motivação para essa transição na carreira de Tatiele foi o fato de não ser comum ver mulheres atuando em posições de comando dentro dos times. O máximo que acontece na maioria das equipes é a fisioterapeuta ou a nutricionista serem mulheres, mas elas atuam na área da saúde, e não na parte do campo, e isso a incomodava bastante.

“O que me chamava muito a atenção é que eu nunca tive treinadora, sempre tive treinadores. E aí me chamava a atenção porque, poxa, eu também sabia fazer aquilo ali. Aí eu comecei a estudar como é que monta o treino, como é que faz isso, como é que faz aquilo. E na época quem voltou com o futebol feminino no Inter foi a Duda, hoje ela é coordenadora técnica do time. E ela montou a escolinha e acabou proporcionando para nós atletas essa vivência. Então acho que essa experiência dentro do próprio clube que eu joguei me estimulou a pensar pelo outro lado, de como planejar um treino”, relatou a técnica.

Para a gaúcha, a baixa representatividade feminina nos cargos de comando dentro dos clubes era desafiante, pois ela sabia que tinha capacidade de também desenvolver um papel importante fora de campo.

A mudança na carreira

Tatiele começou a atuar como treinadora nos estágios, dentro do próprio clube que jogava, o Internacional. Depois de formada, trabalhou no sub-17 do Porto Alegre Futebol Clube, um projeto do Ronaldinho Gaúcho que tinha na cidade na época. Teve, também, uma experiência no interior, em Guaíba, treinando o Canoas Futebol Clube. Mas sua direção começou a mudar quando fez um projeto no Grêmio, onde atuou por 5 anos e desenvolveu a primeira escolinha de futebol feminino do clube, treinando adolescentes de 7 a 17 anos. Posteriormente, a técnica recebeu um convite para trabalhar na TetraBrazil, uma empresa que contrata treinadores brasileiros para ensinar o futebol brasileiro nos Estados Unidos. “Fiquei três temporadas nos Estados Unidos e voltei para a Seleção Brasileira sub-17, por um convite do Luizão, que era o treinador na época. Então, no início, eu trabalhei com categoria de base, e a partir de 2016 eu comecei a trabalhar com o adulto, profissionalmente”, conta.

Tatiele e a equipe que treinou nos EUA em 2014 levantando a taça do USA CUP. (Foto: Reprodução/Instagram)
Tatiele venceu o Campeonato Gaúcho em 2018. (Foto: Reprodução/Facebook)

Depois de ter uma experiência como auxiliar técnica na Seleção Brasileira sub-17, Tatiele comandou a equipe do Internacional por duas temporadas, 2017 e 2018, e participou da reformulação do futebol feminino do clube. Ela nos contou como foi voltar ao time: “O Inter foi um momento muito bacana para mim, porque eu fui atleta e pude retornar como treinadora. É um momento muito especial, de retornar ao clube sendo a treinadora, sendo a mandante. E eu participei do retorno do departamento, eu tive esse privilégio de participar dessa reformulação. Me deixa muito feliz por ser na cidade onde eu moro, no time que eu comecei a jogar futebol”.

Posteriormente, Tatiele recebeu um convite da Ferroviária e foi para São Paulo, em mais uma subida desafiadora em sua carreira. O estado de São Paulo é uma referência no futebol feminino por ser um dos poucos estados que possui, há mais de 20 anos, com a exceção de 2003, o Campeonato Paulista feminino. Tatiele foi chamada sabendo que tinha um desafio nas mãos: lutar para levar de volta a Ferroviária, que é um clube super tradicional na modalidade, para a elite e o protagonismo do futebol brasileiro. Tarefa que a técnica vem cumprindo com excelência desde que começou.

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Fazendo história no futebol

No final de 2019, Tatiele se tornou a primeira técnica mulher campeã do Brasileiro Feminino A1 no comando da Ferroviária, e no Prêmio Brasileirão, realizado pela CBF, foi eleita a melhor treinadora de 2019. Ela acreditou no projeto e cumpriu sua tarefa. As Guerreiras Grenás conquistaram a tão sonhada taça do Campeonato Brasileiro Feminino A1 e se consagraram como a primeira equipe bicampeã da competição.

“É muito marcante para mim e para a minha carreira, principalmente porque era a minha primeira vez na elite do futebol feminino. São sonhos que tu pensa lá atrás ‘poxa, quero ser treinadora no Campeonato Brasileiro, eu quero ser campeã’. E eu consegui atingir de uma maneira tão rápida, mas não menos preparada. Eu me preparei muito para esse momento, me preparei muito para quando a oportunidade surgisse eu estivesse pronta realmente para comandar uma equipe, para enfrentar grandes treinadores, que foi o que aconteceu. Eu estava lado a lado de grandes referências no campo, pensando em estratégias de como vencer aquelas equipes”.

Tatiele preza muito por uma boa qualificação. Além da graduação em Educação Física, ela tem uma pós-graduação em Futebol e Futsal pela Urbes no Rio Grande do Sul, o curso do sindicato dos treinadores profissionais do RS, além de diversos outros cursos, workshops e seminários. Após ter concluído as licenças A e B, se dedica atualmente à Licença Pro da CBF, qualificação que é o mais alto grau da série de cursos disponibilizados pela CBF Academy. Ela acredita que a formação acadêmica agrega muito em sua experiência prática, e as duas coisas se complementam. “Eu tinha experiência de ser atleta e eu complemento com os conhecimentos acadêmicos, que fazem a gente conseguir resultados mais efetivos. E a formação da CBF Academy é uma formação muito completa, me agrega muito, me traz muitas coisas novas”, explica.

A imagem foi feita por Tatiele durante um curso da CBF. (Foto: Reprodução/Instagram)

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Desigualdade de gênero no esporte

Não é novidade que o cenário esportivo ainda tem muita desigualdade de gênero. Diversos esportes já foram proibidos de serem praticados pelas mulheres no Brasil e em outros países. Por aqui, decretos proibiam a prática de desportos considerados por alguns incompatíveis com as condições da natureza feminina, como lutas, futebol, pólo, entre outros. Hoje, está superado esse tipo de desigualdade jurídica entre homens e mulheres, mas, apesar dos grandes avanços que a luta pela equidade de gênero tem proporcionado, as mulheres ainda vivenciam dificuldades no acesso ao esporte, recebendo menos investimento e menores salários.

A invisibilidade feminina dentro do contexto esportivo se relaciona com o papel imposto para as mulheres dentro da sociedade. No entanto, ao longo do tempo, essa situação está mudando, e a figura feminina vem ganhando seu espaço. A representatividade de ver uma Marta, uma Formiga e uma Cristiane jogando bola reforça a vontade de meninas que pensam em chegar onde essas jogadoras estão. Agora temos referências femininas, e Tatiele virou uma delas. Suas conquistas, principalmente como técnica, atuando em um cargo de liderança dentro de um clube de futebol, têm grande significado e importância na luta por um universo esportivo mais igualitário.

“Eu tenho certeza que a representatividade desse título, não só para mim, como mulher, ex-atleta, que pensou lá atrás que tinha capacidade, e principalmente para outras mulheres que já trabalham com o futebol, é uma reafirmação para os diretores e para os clubes de que as mulheres têm capacidade, basta ter uma oportunidade. Porque a gente não precisa ter a oportunidade para se preparar. Tem muitas mulheres muito bem preparadas e precisam realmente desse momento. E eu tive a felicidade de colocar em prática tudo que eu aprendi”.

Foto: Jonatan Dutra/Ferroviária

“Eu sempre fui muito defensora de que o esporte feminino tem que ter mulheres na comissão. E mulheres em cargos que tenham vivência diária, que estejam no campo ou na quadra, não só a fisioterapeuta que está lá no tratamento, a nutricionista, a assessora de imprensa. Mas e quem está dentro da quadra? Não é que eu defenda uma comissão totalmente de mulheres, mas eu penso que pelo menos 50% tem que acontecer”.

Tatiele conta que na Ferroviária sua equipe é bem mista: sua assistente técnica e a preparadora de goleiras são mulheres, e o seu analista de desempenho e o preparador físico são homens. Para ela, isso ajuda a equilibrar o olhar, porque as visões feminina e masculina são diferentes em uma mesma situação, e as duas versões são importantes.

Para Tatiele, a discriminação de gênero no esporte se configura muitas vezes como uma desconfiança da capacidade das mulheres em realizar determinadas tarefas. Ela comenta sobre o fato de as mulheres terem sempre que provar que sabem tal coisa, ou que merecem tal cargo:

“Dentro do âmbito não só esportivo, eu diria, mas no âmbito geral, esse é o nosso desafio: muitas vezes ter que comprovar aquilo que tu já mostrou, e de novo, e de novo, e de novo. Infelizmente isso acontece. E aí não só o resultado, mas a maneira que tu tem que se comportar sempre. A gente tem que, por períodos, ir lá e mostrar de novo que tu é capaz, sendo que essas cobranças não acontecem com os homens, mas com as mulheres infelizmente ainda sim”.

Pandemia do Covid-19 e paralisação dos campeonatos

A pandemia do novo coronavírus afetou todos os setores das nossas vidas: o trabalho, a educação, o lazer, e tudo mais que chamávamos de normalidade. Com o futebol, não foi diferente. No início, até tentaram continuar os jogos com os portões fechados, mas, ao aumentar a gravidade da situação, os campeonatos de futebol foram paralisados, junto com eventos esportivos no mundo todo. Times brasileiros desmancharam elencos, demitiram funcionários e temem falência diante da falta de perspectiva de retomar os campeonatos.

Como forma de apoio, a CBF repassou a algumas equipes um auxílio financeiro com o objetivo de colaborar para que esses clubes possam cumprir seus compromissos com os jogadores e jogadoras durante o período de paralisação. Receberam essa verba as equipes que disputam as Séries C e D do Brasileirão masculino e as participantes das Séries A1 e A2 do Campeonato Brasileiro feminino. Porém, logo após o repasse do dinheiro, o GloboEsporte.com publicou uma série de denúncias de clubes das Séries A1 e A2 do Campeonato Brasileiro feminino, apontando que pelo menos um time de cada região do Brasil não havia repassado o dinheiro para as jogadoras.

A Ferroviária é um dos times que mantêm o salário integral do time feminino até o presente momento e não fez cortes no elenco. “Eu sempre digo que sou muito privilegiada por trabalhar na Ferroviária, que é um clube que respeita muito o departamento feminino, respeita muito as mulheres de uma maneira geral e respeita muito o projeto, que é um projeto a longo prazo. A Ferroviária já tem esse projeto desde 2001 e nunca foi obrigada a ter. Felizmente nós não tivemos corte nenhum. Os salários das meninas foram mantidos, da comissão técnica também”, explicou Tatiele.

“E quando a gente fala assim que não teve o repasse, é um desrespeito com a categoria, com a modalidade. E que bom que hoje em dia a gente consegue mostrar isso nas mídias, que essas injustiças venham à tona. Porque não pode um clube receber um dinheiro por causa do futebol feminino e ir lá e dizer que não estava específico. Se apropriar disso e não pagar as meninas é um desrespeito muito grande”, desabafa.

Sobre a redução do salário das jogadoras feito por alguns clubes, ela completa: “A gente entende, claro, toda essa dificuldade que os clubes estão vivendo, mas eu vejo também que o que as meninas ganham não chega a 1% do que os meninos ganham. Então será que 25% a menos delas seria relevante naquele clube?”.

Futuro

Para a próxima temporada, Tatiele continua no comando da Ferroviária e quer repetir o feito: ser campeã brasileira de novo. Ela vai continuar lutando para manter a ‘Locomotiva’ na linha.

Do time campeão, a Ferroviária só perdeu uma jogadora, que foi para a Coreia. Tatiele admite que as alterações vão acontecer e que é normal a cada ano um clube mudar cerca de 20% do grupo. Ela pretende fortalecer mais o setor ofensivo e o defensivo com algumas jogadoras e afirma que a Ferroviária lhe dá todas as condições de manter a comissão técnica e contratar gente nova. Ela cita um dos últimos reforços, a Robertinha, coordenadora metodológica do clube. Robertinha foi contratada para fazer a ligação do futebol profissional com a base.

Tatiele Silveira beija a taça do Brasileirão conquistada pela Ferroviária. (Foto: Divulgação/Ferroviária)

“Foi uma ano fantástico para nós, para mim pessoalmente. A Ferroviária me dá toda estrutura, todo suporte, valorizou muito nosso trabalho. ‘Nosso trabalho’ eu digo da comissão técnica, das jogadoras”.

O reconhecimento ao trabalho duro que a equipe inteira vem desempenhando não veio somente através da vitória no Brasileiro. No final de 2019, o time ganhou o Prêmio da CONAFUT (Conferência Nacional do Futebol) na categoria de Melhor Departamento de Futebol Feminino do ano. O objetivo da premiação é evidenciar as melhores práticas de gestão e incentivar os bons exemplos de profissionalismo dentro do futebol.

 

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