Torcedoras: a luta por reconhecimento e respeito continua

por Paola Laredo

Em pesquisa realizada pela Revista Marta, 99% das fãs de esportes revelaram já terem sofrido algum tipo de preconceito ou assédio. Fomos buscar as origens desse comportamento e histórias de como essas mulheres batalham para superá-lo e conquistar seus espaços.


Apesar de as mulheres já terem conquistado um espaço bem mais relevante no cenário esportivo, a jornada rumo à igualdade e ao respeito ainda parece ser longa. Debates sobre esse assunto aparecem próximos a datas comemorativas, como o Dia Internacional da Mulher, ou quando há algum acontecimento relevante, mas somem na maior parte do tempo.

A Revista Marta entrevistou 409 torcedoras, e os números são assustadores: 99% delas revelaram já terem sofrido pelo menos um dos preconceitos ou assédios listados.

Um dos motivos desse tratamento discriminatório e abusivo é o histórico das mulheres na esfera esportiva. Elas sempre foram – e, eventualmente, ainda são – vítimas de uma sexualização exacerbada de seus corpos. Além disso, elas também eram excluídas desses ambientes, seja por decisão de órgãos regulatórios, seja por preconceito de uma sociedade extremamente conservadora e machista que não via como apropriada a prática esportiva por mulheres.

O contexto histórico da desigualdade de gênero no esporte

A primeira edição dos Jogos Olímpicos da Antiguidade foi realizada no ano 776 a.C. No entanto, a participação feminina só se deu na segunda edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, em 1900. Mesmo assim, elas só puderam competir em duas modalidades: tênis e golfe. Já a primeira atleta brasileira a participar de uma Olimpíada foi a nadadora Maria Lenk, na edição de 1932, sediada em Los Angeles. As mulheres só puderam competir em todas as modalidades que os homens já competiam nas Olimpíadas de Londres 2012, apenas 8 anos atrás, depois de 112 anos de uma história olímpica moderna.

Silvana Goellner, formada em Educação Física e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano (UFRGS), realiza diversos estudos sobre gênero e esporte. Alguns desses estudos mostram que no Brasil, até meados do século XIX, a participação feminina em ambientes esportivos não era permitida pela sociedade conservadora, a não ser que fosse para prestar alguma assistência ou para acompanhar o marido. As mulheres eram criadas para serem boas mães e esposas, o que não combinava com o suor excessivo, o esforço físico, as competições e a espetacularização do corpo promovidos pelas práticas esportivas.

Ao longo do século XX, as mulheres começaram a reivindicar mais espaço no esporte. Há registros de partidas de futebol e provas de remo disputadas por mulheres logo nas primeiras décadas do século. Mas a luta por reconhecimento no meio esportivo estava apenas começando. Em 1941, o Decreto-Lei nº 3.199 proibiu que as mulheres praticassem esportes que fossem “incompatíveis com as condições de sua natureza”, cabendo ao Conselho Nacional de Desportos (CND) regular essa prática. Em 1965, o CND publicou a Deliberação nº 7, que especificava quais eram esses esportes: lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball. A prática esportiva, associada à competitividade e à agressividade, era vista como uma espécie de ameaça à feminilidade, à delicadeza, à beleza e à sensualidade da mulher. Somente em 1979 essa deliberação foi revogada.

Art. 54 do Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. (Foto: Reprodução)
Deliberação nº 7 do CND, de 7 de agosto de 1965. (Foto: Reprodução)

Toda essa restrição afastou as mulheres da prática esportiva e serviu de base para entendimentos de que esporte não é coisa de mulher. Ainda hoje é comum que nos deparemos com esse tipo de noção, como se a mulher não pudesse ser atleta (pois irá perder sua feminilidade e não terá tantas habilidades quanto os homens), jornalista esportiva (pois não é capaz de possuir conhecimento técnico e tático sobre o assunto) ou torcedora (pois não é capaz de nutrir um sentimento verdadeiro relacionado ao esporte, sem que esteja fazendo isso por causa de algum homem).

Ao longo dessa edição da Revista Marta, abordaremos essas diferentes formas em que as mulheres podem se relacionar com o mundo esportivo. Aqui, nessa reportagem, contaremos histórias de torcedoras que lutam por espaço, reconhecimento e respeito.

Muito mais comum do que a gente imagina

Entre os dias 6 e 11 de maio de 2020, 409 mulheres apaixonadas por esportes responderam a um questionário online disponibilizado pela Revista Marta. Para preservar a integridade e segurança delas e para que se sentissem mais à vontade para compartilhar suas histórias, o questionário foi respondido anonimamente. Ao longo dessa reportagem, incluiremos alguns depoimentos de torcedoras identificadas por números.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Apenas 3 mulheres declararam nunca terem sofrido os preconceitos e assédios listados, e 4 sofreram apenas uma vez. Isso significa que 402 torcedoras foram vítimas de discriminação por duas ou mais vezes.

“Infelizmente, é costumeiro para mim. Estou no mundo masculino há muito tempo, desde criança. Então, sempre ouvi isso, e infelizmente meu próprio pai me priva às vezes de sair com ele para ir em algum lugar para ver futebol que só tem homens. Então, ouvir coisas machistas dos homens infelizmente é de costume pra mim. Me incomodo, mas sei que se me irritar vai ser pior”.

Torcedora 288

Dentre os preconceitos, o que mais chama atenção é a quantidade de mulheres que afirmam que continuamente outras pessoas duvidam de seus conhecimentos sobre esporte. É raro encontrar, por exemplo, alguma torcedora de futebol que nunca tenha sido perguntada sobre a regra do impedimento ou a escalação completa de seu time para ter que “provar” que entende do assunto. Apenas 17 entrevistadas nunca passaram por isso ou não souberam responder.

“Já ouvi também ‘Está querendo me ensinar sobre futebol? O que você entende sobre esquema tático?’, ou simplesmente ‘Cala a boca, você não entende nada de esporte. Nem deveria estar aqui'”.

Torcedora 345

“Parece que as pessoas ficam chocadas, como se as mulheres não pudessem entender ou falar sobre esse assunto”.

Torcedora 34

Quanto aos assédios, surpreende que mais da metade das mulheres relataram já terem sido tocadas sem sua permissão em ambientes ligados ao esporte. Também é preocupante o número das que já foram agredidas com discurso de ódio sexista pessoalmente ou online durante uma socialização sobre esporte: dois terços das entrevistadas (271 mulheres) já passaram por isso, sendo que com 75% delas (203 mulheres) isso aconteceu várias vezes.

“Diversas vezes se aproveitaram do pouco espaço e do ambiente lotado para encostarem nas minhas partes íntimas”.

Torcedora 78

Outro dado impressionante do gráfico acima é que 90% das torcedoras afirmam que já ouviram assovios e comentários sobre seu corpo ou sua aparência de uma maneira que as incomodaram. Não é à toa que também 90% das entrevistadas confessaram que se preocupam com a roupa que vão a bares e estádios acompanhar seus esportes favoritos por receio de serem assediadas (gráfico abaixo).

“Sempre fiquei muito chateada e tentava me esquivar e/ou esconder meu corpo. Sempre ia com uma roupa que tampava mais e mais, mesmo estando calor”.

Torcedora 25

“Sobre a roupa, sempre vou com roupas que não chamem a atenção, pois o medo do assédio é grande. E parece que você se blinda. Fui no Pacaembu em um jogo às 16h, o sol estalando, mas fui de calça e manga longa. Por isso muitas mulheres têm medo de ir”.

Torcedora 39

O medo dessas mulheres se reflete em outro trecho da entrevista. Quando perguntadas sobre a forma como reagiram a essas situações, a maioria delas disse que apenas ignorou e não fez nada, mesmo tendo se sentido mal, envergonhada, assustada, desconfortável, entre outros vários adjetivos. Para a torcedora 174, a solução é “ficar quieta, pois existe o medo de passar para uma violência física”.

“Me senti horrível, me culpei por ser mulher, me senti inferior. Não sei expressar, só que nunca me abati e sempre fiz questão de continuar torcendo”.

Torcedora 121

Procuramos a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) para saber sobre os tipos de ocorrências mais registradas em dias de jogos – e, consequentemente, saber se as mulheres denunciam esses assédios relatados -, mas não obtivemos resposta.

Ao final do questionário, foi aberto um espaço para que as torcedoras pudessem contar alguma estória de preconceito ou de assédio que as tivessem marcado. Abaixo, algumas delas:

Elas se unem

O preconceito e o medo do assédio fazem com que torcedoras criem movimentos, coletivos, torcidas organizadas e grupos de apoio que atuem na defesa do direito da mulher de ir para o estádio torcer e ser respeitada.

Um desses coletivos é o Unidas Pelo CEC, da torcida do Cruzeiro. O grupo foi criado em outubro de 2018 por Carolina Oliveira (21 anos) e hoje conta com 128 torcedoras. “A ideia surgiu querendo unir mesmo mulheres para acompanhar o futebol do Cruzeiro, porque muitas não tinham ânimo ou coragem de irem sozinhas [ao estádio]”, ressalta Carolina. Desse grupo, nasceu outro formado pelas meninas que tinham interesse em jogar futebol.

Elas foram convidadas pelo Mineirão para falar sobre a campanha Repense. (Foto: Acervo pessoal)

Além de Carolina, as redes sociais do grupo são administradas também por Stefani Couto (23 anos) e Cristiane Dias (25 anos). “Temos um grupo no WhatsApp que se chama Unidas Pelo CEC, através do qual a gente combina jogos para irmos juntas, até mesmo quem mora em outras cidades e não tem companhia para ir ver o jogo”, explica Stefani.

Cristiane conta o que a motivou a entrar no grupo: “achei interessante e novo ter um grupo de torcida exclusivamente feminino, isso me chamou atenção”. Ela conta também que a primeira vez que foi sozinha ao Mineirão ficou um pouco assustada e com medo, já que não conhecia ninguém. Hoje, como mora em Ouro Preto, não tem o costume de ir a muitos jogos, mas, sempre que vai, procura algumas meninas do grupo. “A companhia de outras mulheres me deixa mais confortável”, diz.

Stefani mora em Moema, cidade que fica a 180 km de Belo Horionte, e relata que tem medo de ir sozinha. “Sempre tinha uma amiga daqui que ia comigo, mas ela parou de ir, e eu não tinha companhia mais”, conta.

Ela expôs um caso de assédio que sofreu no último jogo que foi sozinha: o clássico entre Cruzeiro x Atlético-MG pela Copa do Brasil, ano passado, no Mineirão. “Um homem estava bêbado, chegou por trás começou a passar a mão em mim. Depois disso, fiquei uns 3 meses sem ir no Mineirão”. Para ela, a companhia das outras mulheres do Unidas Pelo CEC é fundamental.

“Depois que entrei para o grupo, eu me senti mais confortável em ir aos jogos porque eu sabia que não estaria sozinha”, confessou.

Outro coletivo que surgiu da união de torcedoras em prol de uma causa comum foi a Grupa, do Atlético-MG. Em 2016, a apresentação dos novos uniformes do clube, fabricados pela marca canadense DryWorld, deu o que falar. Enquanto os modelos homens desfilavam de short, as mulheres usavam apenas calcinha para acompanhar a camisa nova. Outras, inclusive, desfilaram apenas de biquíni enquanto seguravam a bandeira do clube.

Foto: Reprodução

Para completar, no dia seguinte ao desfile, surgiram, na internet, fotos de etiquetas de camisas da DryWorld com os dizeres “give it to your wife” (“entregue à sua esposa”) próximo às instruções de lavagem.

Em nota divulgada na época, a DryWorld afirmou que “tal etiqueta foi criada apenas como uma peça publicitária para uma campanha não aprovada pela empresa”. Mesmo diante de tudo isso, 12 torcidas organizadas do Atlético-MG publicaram, em conjunto, em suas redes sociais, uma imagem de apoio ao clube e à patrocinadora, desejando boas-vindas.

Em meio a essa polêmica, 21 atleticanas que se sentiram objetificadas e ofendidas pelo episódio publicaram uma nota de repúdio. Elas acusaram o clube de se mostrar “excludente com as mulheres torcedoras – e consumidoras – e passivo em relação a atitudes machistas dentro e fora do estádio”. Ainda segundo a nota, as mulheres foram “tratadas como peça de enfeite de estádio, encomendadas para agradar o público masculino”.

“Depois disso, fomos atacadas virtualmente e nos unimos por uma necessidade social de suportarmos juntas os ataques e de nos fortalecermos enquanto mulheres no futebol”, relatam.

E assim nasceu a Grupa. “Esse nome é uma brincadeira. Estávamos sendo ironizadas no Twitter, sendo chamadas de ‘panelinha’ e ‘grupinho’. Uma amiga, então, respondeu que, na verdade, éramos uma ‘grupinha'”.

Integrantes da Grupa reunidas no Mineirão durante clássico entre Cruzeiro x Atlético-MG. (Foto: Reprodução/Instagram)

Catharina Tomazzi (22 anos), integrante da Grupa, é estudante de Jornalismo e pretende seguir na área esportiva. “Já era um sonho e agora decidi investir para se tornar realidade”, afirma. Sua paixão pelo futebol e pelo Atlético-MG veio de berço, por ser filha única de um pai muito atleticano. Apesar disso, ela conta que não teve oportunidade de praticar o esporte.

“Eu não jogava futebol, isso nunca aconteceu, então eu não tenho esse conhecimento prático, por conta dessa criação patriarcal. Eu sempre fiz balé, fiz jazz, em que eu não era boa, mas era o que cabia às meninas, né? Sempre foi assim”.

No que diz respeito a assédio, ela relata um caso que presenciou do lado de fora do Mineirão, e que exemplifica o fato de que normalmente, por medo, as mulheres não se manifestam e não tomam nenhuma atitude contra o agressor. Ouça:

Catharina diz que ela percebe atualmente, entre amigos e até mesmo dentro de sua família, que quando o assunto é futebol, as mulheres são excluídas. “Quando eu dou uma opinião, ela é ignorada. Isso acontece muito, muito mesmo. E incomoda muito, porque quando você começa a entender o que é o machismo, isso te corrói de alguma forma”, desabafa.

Ela contou que sua opinião só passou a ser valorizada e respeitada recentemente, quando passou a fazer parte do canal Fala Galo.  “Com o Fala Galo, eu vejo que as pessoas estão me dando muita moral, coisa que nunca aconteceu. Antes eu era invisível quando falava de futebol, e hoje essas mesmas pessoas se admiram e me parabenizam por eu falar através de um canal que é conhecido, e não só por mim mesma. Eu acredito que se eu só tivesse pegado o meu Instagram e começado a falar sobre futebol, as pessoas iriam criticar muito mais do que elogiar, e hoje elas elogiam mais do que criticam”.

Rosana Caroline (24 anos) também herdou essa paixão do pai, que já dizia desde a barriga que ela seria atleticana. Depois que ela nasceu, o incentivo só cresceu, e o pai virou a melhor companhia para assistir aos jogos, sofrer e vibrar. “E esse amor eu passei pro meu filho, e espero que continue só crescendo”, diz.

Depois que entendeu o que era assédio, Rosana percebeu o quanto ele acontece com frequência nesse meio do esporte, e afirmou que quem está sempre nos estádios convive bastante com isso. “Graças a Deus, hoje, devido ao empoderamento feminino, deu uma diminuída, mas ainda estamos na luta para ocupar um lugar que é nosso”.

“Já escutei por diversas vezes dentro do estádio que não entendia de futebol, que eu estava em lugar errado, e isso só me deu mais vontade de frequentar e ocupar esse espaço. Agradeço muito a Deus por ter entrado para a Grupa, onde podemos nos apoiar, fortalecer nossos pensamentos femininos e mostrar nossas ideologias”, completa.

Foto: Rebeca Braga

Vitória Diniz (22 anos) vem de uma família inteira de atleticanos fanáticos, incluindo o avô, com quem conviveu muito. No entanto, seus pais não gostam de futebol, e sempre evitaram que ela frequentasse estádios. “Minha imersão tardia no ambiente de torcida foi acolhedora, em grande parte, pela presença da Grupa na minha vida. Uma amiga me apresentou o grupo, e eu estive ali durante um tempo até finalmente poder ir ao Mineirão pela primeira vez, no aniversário do time. Me vi insegura, ansiosa e não gostaria de ir sozinha”. Ali foi criado um laço que desde então só se fortalece.

“No que diz respeito à discriminação de gênero, duvido muito encontrarmos uma mulher que não a tenha sofrido no âmbito esportivo. Qualquer mulher que, minimamente, ousa expressar sua opinião, mesmo que virtualmente, tem sua voz silenciada ou diminuída”.

Vitória explica que antes de conhecer a Grupa e, por meio dela, pessoas com ideais progressistas e que defendem ambientes mais igualitários, sempre esteve em grupos majoritariamente masculinos (às vezes sendo a única mulher), e nunca teve a chance de discutir de igual para igual, fossem os assuntos simples ou complexos.

Ela afirma, ainda, que o machismo está enraizado também dentro dos clubes, e não apenas na torcida. “Como estudante de fisioterapia, já realizei uma visita ao Centro de Treinamento, onde ficou muito claro que eu jamais teria a chance de trabalhar ali. Na época, ainda não existiam os times femininos. Por quê? Por ser mulher, simplesmente. Nunca é dada uma resposta mais elaborada e sequer existe um pesar ao falar sobre isso. É assim, sempre foi assim, ninguém questiona”.

Como se não bastasse, Vitória diz que também são recorrentes as situações de assédio. “São diversas situações que nos paralisam, nos revoltam, e nem sempre somos capazes de reagir na hora”. Ela conta que já passou por uma situação em que foi assediada por policiais militares depois de um jogo, quando foi pedir uma informação, e detalha outra experiência ruim que teve enquanto esperava um ônibus para ir a um jogo no Independência, num domingo:

“Um homem, consideravelmente mais velho do que eu, também com a camisa do Galo, se aproximou de mim e começou a conversar comigo. Eu respondia de forma monossilábica, sem olhar muito para ele, rezando para o ônibus vir logo. Ele insistia que fôssemos juntos ao jogo, que pegássemos um Uber juntos porque o ônibus iria demorar. Cheguei a um nível de desconforto que inventei uma desculpa de que iria ao supermercado e fui andando até uma rua próxima para pedir um Uber. Em outros momentos, já nos arredores do estádio, voltei a vê-lo de longe e o evitava ao máximo”.

Integrantes da Grupa durante jogo no Mineirão. (Foto: Reprodução/Instagram)

“Vejo como fundamental que as mulheres ocupem esses espaços que antes nos foram negados. Juntas, seja em coletivos como a Grupa ou seja na companhia de uma amiga, mãe, namorada ou irmã. Vislumbro um futuro com um ambiente mais acolhedor e seguro para as gerações de nossas filhas e netas que vêm por aí”.

Vitória Diniz

Ela se impõe

A estudante de Pedagogia Ana Luíza Miranda (23 anos) é um exemplo de torcedora que não tem medo de se posicionar e lutar pelas causas que acredita, entre elas o feminismo. Membra de uma torcida organizada, ela toca bateria e tremula bandeirão, função normalmente atribuída aos homens, e não se intimida se alguém duvidar de seu potencial por ser mulher.

Ana Luíza mostra força e personalidade quando o assunto é defender as causas que acredita. (Foto: Rebeca Braga)

Torcedora fanática do Atlético-MG desde a barriga da mãe, Ana Luíza foi levada ao Mineirão pela primeira vez ainda aos 7 meses de vida, e não parou mais. “Eu e meus irmãos fomos criados dentro do estádio, todos os domingos de jogo era a mesma rotina e alegria. Éramos ‘mascotinhos’ do Galo e entramos em campo diversas vezes com os jogadores”, recorda.

Ana Luíza explica que sempre teve espírito de torcedora organizada. Mesmo antes de fazer parte oficialmente, ela já gostava de entrar mais cedo no estádio para ver as torcidas separando material, colocando as faixas e bandeiras e afinando os instrumentos. Foi por isso que aos 17 anos resolveu se filiar à torcida organizada Fúria Alvinegra. Para ela, assumir esse papel foi muito natural desde o início. “Quando eu finalmente entrei numa torcida organizada, eu sempre fiz de tudo, não tinha diferença nenhuma. Eu não estava lá para ser só mais uma, eu queria trabalhar, colocar a mão na massa, fazer de tudo”.

Quando ela chegou à Fúria, a bateria estava parada, e ela fez questão de encorajar os outros membros a reativá-la.

“Era um momento que a nossa bateria estava encostada, e aí foi uma iniciativa minha e de uma amiga, com outros amigos nossos, da gente falar ‘vamos fazer! Se precisar, todo mundo toca, a gente aprende'”.

Foto: Rebeca Braga

Hoje, metade da bateria da Fúria Alvinegra é composta por mulheres. Mas nem por isso Ana Luíza deixa de passar por alguns constrangimentos. Quando há encontros de baterias de diferentes torcidas organizadas, para aprender técnicas ou músicas novas, ela tem que se reafirmar para quem não a conhece. “Eu tenho que mostrar na prática que eu sei, senão eles vão achar que eu estou querendo aprender ou que não sou tão boa assim, e aí eu mostro o que eu sei fazer”.

⠀⠀

“É uma questão típica, né? De você ser uma mulher capacitada num ambiente com outros homens e, mesmo eles não sendo tão capacitados ou menos capacitados que você, eles vão se impor, eles vão chegar na sua frente, vão querer se mostrar e se colocar no seu lugar. Você não é prioridade. Ninguém pensa que você pode tocar e, principalmente, que você pode ser melhor do que eles”.

“O tempo todo a gente tem que se reafirmar, mostrar que a gente tem capacidade, que a gente sabe o que está fazendo, o que está falando. A gente mata um leão por jogo”.

Ana afirma que o preconceito que ela sofria enquanto mulher torcedora diminuiu um pouco depois de se filiar à torcida organizada.

“Antes de me tornar torcedora organizada, particularmente eu sentia que o preconceito e a discriminação com a minha relação com o Atlético era muito maior. Quando você é torcedora organizada, tem aquele respaldo, porque de certa forma você acaba acompanhando mais, indo mais aos jogos, então acabam legitimando mais o seu amor com o clube e o seu entendimento sobre futebol. E quando eu ia sem ser torcedora organizada, eu sentia isso um pouco mais. Se eu fosse aos jogos sozinha, eu era sempre muito mais questionada durante os jogos, eu sentia que eu era muito mais vista como um objeto, como alguém que estivesse lá para enfeitar o jogo ou para poder fazer a festa de outros homens, o que não é verdade. Eu sempre fui única e exclusivamente por conta do Atlético, por causa do meu amor”.

Antes, ela costumava ir aos jogos com o irmão ou com as amigas, e confessa que havia um sentimento de insegurança e vulnerabilidade. Além disso, por ser mais nova, ela não conseguia se impor como hoje. “Depois que eu entrei para a torcida, eu senti uma diferença. Eu não era mais questionada com relação ao meu amor pelo Atlético e nem se eu estava indo lá por outro motivo, por causa de homem, ou coisas do tipo”.

Com relação ao assédio, ela conta que não mudou muito, mas que hoje em dia ela se impõe, briga e denuncia. “Dentro da torcida mesmo aconteceram alguns episódios onde eu me posicionei, alertei as outras pessoas e eles tomaram posição. E a partir desse momento, as outras meninas também começaram a se posicionar, e os homens começaram a entender a gravidade do assédio e da falta de respeito e se colocar no nosso lugar”. Desde então, além de eles mudarem suas próprias posturas e repensarem suas atitudes, também estão prontos para tomarem alguma providência caso sejam solicitados pelas torcedoras.

Infelizmente, já houve situações em que os homens da torcida organizada precisaram intervir para proteger Ana de um assédio na arquibancada, como ela detalha no áudio abaixo:

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Ana Luíza não mede esforços para brigar por uma torcida mais igualitária e democrática, que respeite todas as pessoas e seja inspiração não só para outras organizadas e para a torcida em geral, mas também para a relação pessoal diária desses torcedores, em suas casas e com seus amigos. “Trabalhar a empatia e o respeito ao próximo e se colocar no lugar do outro é um processo diário, e todo mundo deve fazer. O que eu, as outras meninas e os rapazes da minha torcida procuramos é sempre conversar, dialogar, ouvir todo mundo da mesma forma, se posicionar. Se está legal, a gente fala. Se não está, a gente fala também. Nessa construção mesmo para que seja uma torcida mais democrática e que isso se espalhe e sirva de exemplo de alguma forma”.

“Muitos foram os momentos em que eu precisei tomar medidas mais drásticas, como procurar a segurança do estádio, para casos de homofobia, casos de assédio, casos de racismo. Eu já perdi as contas de quantas vezes eu tive que me posicionar, reclamar e interferir em alguma situação que me constrange ou que constrange outras pessoas. Ultimamente o meu posicionamento é bem incisivo. Eu não costumo deixar nada passar. Eu sempre sou a ‘mimizenta’, a chata, a reclamona, a feministona, mas eu acho que é fundamental”.

Há esperança

Torcedoras como Ana são um exemplo de que as mulheres podem e devem estar onde quiserem, fazendo o que quiserem e devem ser respeitadas. E as conquistas que ela conseguiu dentro da torcida que participa são uma esperança de que um dia as torcidas possam ser mais democráticas e respeitem a diversidade que existe em cada uma delas. Como Ana, existem diversas mulheres fortes lutando e conquistando respeito e espaço nesse mundo do esporte que ainda é tão machista e preconceituoso. É um caminho longo e difícil, mas possível. Com o tempo, é possível colher bons frutos.

“Sendo torcedora, enfrentamos diversos desafios e constrangimentos em todos os jogos. Dentro de uma organizada, os desafios são ainda maiores. Por ser mulher, você precisa fazer muito mais do que o esperado para conquistar seu espaço, respeito e ter poder de voz. Por sempre me posicionar, não ter medo de nenhuma função e me dedicar integralmente ao Atlético nos jogos, consegui além do meu espaço, mudar muitos posicionamentos e comportamentos machistas, homofóbicos e desrespeitosos dos demais colegas, o que é muito positivo para todos nós. Hoje, a receptividade e igualdade dentro da torcida é muito maior. Muito ainda há de ser feito, mas não vamos desanimar. Chegaremos lá!”

Ana Luíza Miranda

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s