
por Natália Oliveira Souza
O maior patrimônio de um clube e a engrenagem mais importante do futebol é a torcida. É ela quem incentiva, anima, dita o ritmo do jogo, acolhe o jogador e eterniza uma jogada. Como no Brasil o futebol é historicamente um elemento muito marcante na nossa cultura, desde muito cedo as pessoas já são incentivadas a se fidelizar a um clube de futebol, aquele que carregará para sempre no seu coração.
Por ter esse caráter bem popular, os estádios de futebol sempre foram muito receptivos em relação a classes sociais, com preços de ingressos acessíveis a todos. No entanto, como nem tudo são flores, nos últimos anos, aqui no Brasil, esse cenário passou por mudanças estruturais bem significativas com o afastamento direto dos chamados “torcedores raiz” dos estádios, ou seja, aqueles que durante todos esses anos acompanharam a evolução do seu time e do futebol brasileiro como um todo, em detrimento de pessoas pertencentes às classes sociais mais elevadas, ou seja, há uma elitização em andamento.
Por outro lado, sabemos que ainda hoje mas mais intensamente no passado os estádios de futebol eram bastante inóspitos para mulheres, pessoas LGBTQIA+, sem contar a quase completa despreocupação com questões de acessibilidade para pessoas com deficiência. Ainda hoje é difícil para esse público frequentar os estádios, mas recentemente cresceu a consciência e a sensibilidade de que é preciso respeitar as diversidades no esporte. Ainda há que se considerar que talvez as coisas tem melhorado apenas para mulheres, pessoas com deficiências e LGBTQIA+ de classes sociais mais altas.
Portanto se faz necessário uma análise com um olhar mais crítico. Será que o perfil dos torcedores mudou ao longo dos tempos? Essa mudança estaria ligada à arenização dos estádios que ocorreu em 2014? O futebol raiz era simplesmente mais democrático? Ou também existiam elementos antidemocráticos no futebol de outrora que muitas vezes ficam escamoteados?
Para conversar sobre este assunto, foram entrevistadas diversas personalidades do futebol, desde jogadores da base até renomados pesquisadores da área. São eles: os jogadores da base Davi Costa e Edmo Júnior (Soccer BH); o treinador e ex-jogador Elmo Molico (Soccer BH); os torcedores Giusepp Gonçalves (Máfia Azul) e Paula Silveira (Torcida Organizada Vingadoras); a ex-atleta, ex psicóloga do esporte e atual professora universitária Paula de Paula (PUC Minas); o historiador do esporte Rafael Fortes (UNIRIO) e a jogadora Thais Duarte Guedes (Santos e ex-Seleção). Vamos ver o que eles acham da disputa entre futebol raiz e futebol elite?
O que é a elitização do futebol? Como ela se iniciou?
Na Copa do Mundo de 2014, R$8,3 bilhões foram gastos com a padronização de 12 (doze) estádios brasileiros em arenas para seguir os padrões estipulados pela Federação Internacional de Futebol- FIFA (dados divulgados pelo Governo Federal). Uma das consequências da melhoria dessa infraestrutura foi o aumento do preço dos ingressos. Um estudo da Pluri Consultoria apontou que o preço médio dos ingressos mais baratos no Campeonato Brasileiro aumentou 300% entre 2003/2013, enquanto a inflação no período foi de 90%.

Para o treinador e ex-jogador Elmo Molico, “a construção das ditas arenas de futebol fez com que o futebol se encarecesse no preço do ingresso, no consumo dentro dos estádios, na criação do sócio torcedor. Isso tudo mostrou que o ‘povão’, que eram aqueles que enchiam os estádios, ficou um pouco excluído. E realmente teve uma mudança até na maneira de torcer, aquele povo mais apaixonado que ia aos jogos mesmo contando seu ‘dinheirinho’ no final do mês para poder participar tem diminuído bastante”.

A professora e pesquisadora Paula de Paula complementa que:
“O futebol deixou de ter uma torcida participativa para ter uma torcida que assiste elegantemente e vai arrumadíssima para o jogo para ser fotografada”.
Paula de paula, professora da puc-mg
É importante também entender que o poder aquisitivo da população está diretamente ligado à questão racial. Dentre os 10% da população com menor rendimento financeiro, 75,2% são negros (IBGE 2018). O historiador Rafael Fortes afirma ter percebido um nítido embranquecimento na torcida do Flamengo que acompanha o time no estádio desde que começou a acompanhar o time, em 1986.
Outro aspecto destacado tanto por Rafael Fortes quanto por Elmo Molico foi a presença das famílias no estádio. Para aqueles que possuem um numeroso núcleo familiar, a ida ao estádio se torna ainda mais cara. Segundo o Banco Mundial (2012) a taxa de fecundidade brasileira é de aproximadamente 1,72 filhos e, segundo a Pluri Consultoria (2012), o preço médio dos ingressos mais baratos corresponde ao valor de R$ 38,00 reais. Fazendo as contas, temos que uma ida ao estádio em uma família de quatro pessoas (casal + 2 filhos) custa em torno de R$ 152,00 reais, 24% do salário mínimo daquele mesmo ano.
Além disso, outro ponto chave lembrado pelos dois entrevistados foi o momento em que o Maracanã deixou de ter o setor da “geral” no ano de 2005. Para quem não conhece a geral era uma área sem assentos, à beira do campo e com preços mais acessíveis. Essa alteração ocorreu para que o estádio se adequasse ao padrão FIFA. Juntamente com a Copa do Mundo de 2014 a extinção da “geral” acontecimento pode ser considerado um ponto decisivo para a elitização do futebol brasileiro.
Giusepp Gonçalves, integrante da Máfia Azul, afirma que a cadeira numerada e o ingresso marcado são tentativas de aplicar à cultura europeia no Brasil. Também afirma que a padronização dos estádios pode proporcionar uma maior organização e se questiona qual seria o custo disso. Para Giusepp, perde-se o torcedor “do povão”, perde-se o calor humano e perde-se a alegria contagiante.
Em concordância com Giusepp, Paula de Paula afirma que em atos como esse, “nós revelamos a nossa pobreza cultural porque ao invés de permitir que todas as pessoas participem do futebol, que tem uma identidade nacional muito grande, não, a gente isola o ‘povão’ e vai elitizando.”

Outro detalhe importante levantado por Rafael Fortes é que se costuma tratar a elitização do futebol como se não houvesse a permanência de quem já acompanhava o futebol de antigamente quando ainda os jogos eram disputados com finalidade de criar um espetáculo. O pesquisador afirma ter amigos, por exemplo, que viram com ele o Romário marcar o gol da final da Taça Guanabara de 1995 e que continuam frequentando o estádio hoje em dia. O que confirma a existência de um público fiel ao hábito de ir aos jogos durante décadas, apesar de todas as adversidades.

Embora pareça que a tendência da construção de arenas tenha vindo pra ficar, a torcedora atleticana, Paula Silveira, espera que seu time consiga se reaproximar da classe popular depois da construção da Arena MRV, proposta como um local para privilegiar o clube e seus torcedores.
Há diferença entre os interesses dos atletas e dos dirigentes?
O jogador Edmo Júnior comenta que grande parte dos dirigentes de futebol costumava atuar como jogadores, o que permite que eles tenham uma leitura de mundo semelhante a dos jogadores. Todavia, ao mesmo tempo, ele afirma que a chefia tem, sim, interesses diferentes dos atletas. Todos os entrevistados concordam com essa afirmativa. Seu parceiro de campo, Davi Costa, afirma que os jogadores têm mais amor ao futebol, enquanto os dirigentes “tocam o esporte como fariam com uma empresa qualquer”.
Outra diferença entre os dirigentes e os jogadores é a visibilidade. Elmo Molico nos lembra que os jogadores são mais vistos na mídia e, consequentemente, recebem mais cobranças. O treinador afirma que vemos notícias sobre vendas e negociações, mas não sabemos o que realmente acontece nos bastidores.
Mesmo com todas as diferenças, o torcedor Giusepp Gonçalves afirma que jogadores e dirigentes têm algo em comum: a paixão pelo dinheiro. A questão financeira, certamente, é um aspecto marcante na relação dos jogadores e dos dirigentes com seus clubes.
Segundo Paula de Paula:
“Os atletas já não têm mais noção que eles são empregados. Eles também se acham donos de sua própria empresa pessoal e não sabem como lutar contra o que está acontecendo. Então, ele adere a essa ideologia dominante de que tudo se vence com esforço. Assim, reforça-se a ideologia da meritocracia e do valor monetário atrelado ao valor pessoal do jogador”. Afinal, o melhor jogador é o que vale mais?
paula de paula, professora da puc-mg
O historiador Rafael Fortes diz que as grandes estrelas dos principais times do futebol brasileiro não parecem preocupadas com esses conflitos de interesses. Raramente vemos movimento de jogadores protestando ou fazendo greve por melhores salários.
Na retomada dos jogos em meio à pandemia, por exemplo, o mínimo de horas de intervalo entre um jogo e outro baixou de 66h para 48h, sem que o Sindicato de Atletas de São Paulo fosse consultado. Todavia, não vimos nenhuma repercussão do caso na grande mídia. O jogador não iria se arriscar a perder seu valor de troca em meio a um cenário tão instável quanto o da pandemia. Percebemos neste momento o lado proletário do jogador. Ele tem sua força de trabalho e seu talento comprados a altos preços e se submete às regras do jogo visando possíveis lucros.
Rafael afirma que, “nos EUA houve movimentos de greve e paralisações que inviabilizaram uma temporada inteira.” Em 2012, por exemplo, a National Hockey League – NHL (liga de hockey no gelo) – cancelou todos os jogos da pré-temporada devido às paralisações para aumento de salário.
O futebol raiz era mais democrático?
Vimos acima que, na época do futebol raiz, o ingresso era proporcionalmente mais barato que atualmente, o que permitia um maior acesso das pessoas de classes sociais mais baixas aos estádios. Pensando nisso, muitos torcedores e pesquisadores afirmam que o futebol raiz era mais democrático que o atual. Mas, o esporte é uma caixa de ressonância da sociedade, então, se o olharmos com outras lentes, também teremos o futebol raiz como mais democrático?
No que se refere à entrada e permanência de mulheres nos estádios, Rafael Fortes conta que, no final dos anos de 1980, era comum que a torcida chamasse as mulheres que frequentavam o estádio de “piranha”.
“As poucas mulheres torcedoras, usavam uma camisa de homem do maior tamanho possível para que as formas do corpo não aparecessem. Para as mulheres era um ambiente totalmente hostil. Parece-me que, agora, tem muito mais mulheres frequentando o estádio do que há 10 anos, e mais mulheres que conseguem assistir ao jogo sem serem perturbadas.”
Rafael fortes, historiador do esporte e professor da unirio
Ressalta-se que, como visto na primeira edição da Revista Marta, o assédio ainda está presente nos estádios, mesmo que em menor grau.
Em relação à infraestrutura também há muito a ser melhorado. Há apenas dois anos, a Câmara Oficial de Belém teve que criar um projeto de lei para que os estádios aumentassem o número de banheiros femininos para, no mínimo, 30% das instalações sanitárias do local. No estádio Mangueirão havia apenas quatro banheiros femininos contrastando com 44 masculinos (e desses 48, apenas dois eram preparados para receber pessoas com deficiência).
Para além da torcida, algumas jornalistas do esporte relataram, em 2018, que a área destinada à imprensa no estádio do CSKA Moscou – time de futebol da liga russa – sequer tinha banheiros femininos.
Segundo a professora Paula de Paula, ex-jogadora de vôlei, ainda vemos outras barreiras para a presença das mulheres tanto nos estádios quanto no campo e na comissão técnica. Ela destaca as dificuldades que enfrentou enquanto atleta e comissão técnica que a motivaram a desistir de trabalhar com o esporte.
“Embora eu tenha sido 3x campeã brasileira, quem foi convocado para liderar as equipes foi o meu auxiliar técnico. É possível que a gente veja, também, psicólogos sendo contratados ganhando mais que uma psicóloga do esporte.”
paula de paula, professora da puc-mg

Em suas pesquisas sobre a presença da mulher no esporte a partir da perspectiva da atleta, Paula de Paula percebeu como os treinadores se colocavam como pais das atletas. Eles se preocupavam com a sexualidade delas, com a roupa que elas usavam, com o horário livre que elas tinham. Isso demonstra a relação paternal, mas também patriarcal entre treinador e jogadora, deixando evidente a cultura machista da nossa sociedade.
Quem também se afastou do esporte após uma situação de discriminação foi a torcedora Paula Silveira. Após uma situação de homofobia por parte da torcida, ela ficou mais de cinco anos sem ir aos jogos. A presença de pessoas LGBTQI+ no futebol e nas torcidas segue sendo um tabu. Talvez por isso a homofobia escancarada nos cantos de torcidas rivais seja tão naturalizada.
Como mostramos na edição principal desta edição da Revista Marta, os casos de racismo no futebol continuam ocorrendo, mas não mais passam despercebidos: Racismo e Ativismo dos Atletas.
Em relação ao acesso de pessoas com deficiência, a jogadora Thais Guedes comenta que os estádios deveriam, obrigatoriamente, ter condições para receber este público. Entretanto, em muitos estádios faltam elevadores, rampas com corrimão, lugar na arquibancada para colocar cadeira de rodas, banheiro adaptado, etc. A adaptabilidade dos estádios para atender as pessoas com deficiência vem melhorando gradualmente. Mas, assim como nas outras situações citadas anteriormente, ainda falta muito para ser melhorado.
“Tem muita gente que acha que futebol e essas questões de preconceitos e discriminação não devem se misturar. Mas eu penso o contrário, exatamente porque o futebol é algo que está dentro de todas as casas independente de gênero, classe social, raça, orientação sexual. Então o futebol é uma ferramenta que pode modificar muito pensamento retrógrado.”
paula silveira, integrante da torcida organizada vingadoras

Mas afinal, qual é o melhor, o futebol raiz ou o atual?
Essa pergunta foi feita para todos os entrevistados. Edmo Junior, com 15 anos, diz que seu maior ídolo é Cristiano Ronaldo, um dos maiores craques mundiais. Elmo Molico, treinador experiente, comenta que a evolução aconteceu em todos os setores e o futebol não podia ficar estagnado.

Paula Silveira diz que não há como comparar, pois, embora hoje se construa projetos em longo prazo pensando no crescimento da instituição (como é feito na Premier League), ela sente falta da identidade que tínhamos entre o jogador e o clube.
Paula de Paula traz uma reflexão interessante acerca da tão comentada diferença técnica entre os jogadores raiz e os da atualidade. Ela diz que devemos pensar quais as consequências que geram esse avanço no futebol. Muitos dizem que os jogadores atuais viraram “robôs”, mas devemos pensar além da discussão sobre a magia nas jogadas individuais. No futebol atual, vemos muitas lesões de atletas e muito desgaste emocional. Esses problemas foram justamente os apontados como maior dificuldade pelos jogadores Davi Costa e Edmo Júnior. O esporte de hoje força os atletas a passarem dos seus limites e não respeitarem o próprio corpo.

Muitos que afirmam que o futebol raiz era superior justificam-se dizendo que o futebol de antigamente não era mercantilizado. O historiador do esporte Rafael Fortes aponta que esse argumento está incorreto do ponto de vista histórico. Todos os estudos sobre a história do futebol e dos outros esportes no Brasil nos séculos 19 e 20, mostram que o esporte era sim mercantilizado. Inclusive, que o esporte não tinha autonomia financeira e gerencial em relação a outros espetáculos e atrações do mercado do entretenimento, como o circo. Além disso, no nível profissional, os clubes recebiam de prefeituras um terreno público para construir seus estádios. Ou seja, os terrenos públicos foram apropriados pela classe dominante para construir um estádio que funcionava como fonte de renda. Esses e outros fatores históricos comprovam que o esporte sempre foi mercantilizado. O que não quer dizer que esse processo não tenha se intensificado.

Rafael comenta também que, antigamente, mesmo os jogadores de times grandes, não tinham segurança em relação à sua carreira, então não conseguiam acumular dinheiro suficiente para ter uma vida tranquila quando parassem de jogar. Tinham muitos problemas em relação às questões trabalhistas, destoando das grandes fortunas que as estrelas do futebol atual acumulam.
A jogadora Thais Guedes comenta que, hoje, as pessoas estão muito mais interessadas em conhecer as atletas que praticam futebol feminino, como pôde ser visto na Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019. Mas a paixão pelo futebol feminino ainda não contagiou os investidores da mesma maneira que o masculino. Os investidores que conseguiram perceber o futuro promissor da modalidade estão dando suporte a ela e colhendo frutos, mesmo que eles o façam apenas pelo dinheiro, o resultado final é positivo e ajuda a instituição do futebol feminino como um todo.
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