por Wander Soares, Sofia Leão, Diego Silva Souza e Natália Oliveira
Em uma das anedotas mais lembradas do livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, escrito pelo jornalista Mario Filho e publicado pela primeira vez em 1947, é contado que o jogador Benicio Ferreira Filho levava Robson e Orlando para o treino do Fluminense. No caminho, Benício precisou frear o carro bruscamente para evitar atropelar um casal que atravessava a rua, fazendo com que Orlando batesse a cabeça no para-brisa. Nervoso, o jogador proferiu xingamentos racistas aos pedestres e recebeu de resposta um comentário de Robson, pedindo para ele parar: “Eu já fui preto e sei o que é isso”.
Apesar de datar da primeira metade do século passado, a frase é sintoma de um “racismo à brasileira”, que, como defende a pensadora Lélia Gonzalez, estabelece uma ‘superioridade’ branca ocidental à uma ‘inferioridade’ negro-africana, instigando dessa maneira a negação das raízes do nosso país. O problema apontado por Lélia se alastra por toda nossa história e sociedade, e os esportes não fogem à regra.
“A gente vai pensar em Reinaldo, vai pensar em Aranha e vai lembrar que essas portas fecharam”
Marcelo Carvalho, fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol
O brasileiro se acostumou a não falar das questões raciais, mas o racismo não desapareceu só por não estar sendo debatido. Pelo contrário, ao longo dos anos, inúmeros casos de discriminação continuaram acontecendo sucessivamente dentro das quadras, dos campos e do tatame. Essa violência não ocorria só por meio de palavras, mas também pelo estigma designado a atletas negros, como o de que goleiros negros eram menos confiáveis — nascido da responsabilização da derrota da Copa de 1950, no Brasil, ao goleiro Barbosa.
Houve aqueles que ousaram se levantar contra o racismo, como é o caso do ídolo do Atlético-MG, Reinaldo, atacante de grande sucesso nos anos 70 e famoso por sua emblemática comemoração erguendo os punhos cerrados em referência ao Partido dos Panteras Negras, organização política de suma importância na luta pelos direitos civis e antirracismo nos Estados Unidos. O gesto também foi utilizado pelo taekwondista Diogo Silva ao conquistar o quarto lugar na Olimpíada de Atenas em 2004. Mas esse não é o caminho mais comum.
O professor de educação física Luciano Jorge de Jesus dá aulas nas redes públicas de educação de Belo Horizonte e de Minas Gerais e passou a colaborar com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, em 2017. Ele ressalta uma fala do fundador da iniciativa, Marcelo Carvalho, que o marcou: “Os jogadores têm dificuldade de se posicionar [contra o racismo] porque se veem sozinhos. Eles não vão tomar partido para algo que não dê possibilidade de se fortalecer”.
O professor cita o exemplo de Aranha, goleiro que passou por um processo ininterrupto de humilhação depois de ser vítima de ataques racistas quando defendia o Santos Futebol Clube.
“Aí o povo fala, ‘Aranha caiu demais’. Ter que encarar o racismo e jogar bola, às vezes o cara não suporta fazer isso sozinho e quebra”.
Luciano Jorge de Jesus, professor e integrante do Observatório da Discriminação Racial no Futebol
Rompendo as Fronteiras
Nos últimos anos, a manifestação antirracista por parte dos atletas vem ganhando mais força, com figuras de grande visibilidade no Brasil se posicionando de forma mais direta. É possível apontar várias causas para essa onda crescente de engajamento, como, por exemplo, a popularização das redes sociais e o aumento da discussão na mídia. Mas também chama a atenção que esse aumento de manifestações coincide com momentos de grande efervescência do debate racial em países como Estados Unidos.
Para o pesquisador Pablo Moreno, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), existe uma relação entre as manifestações norte-americanas e brasileiras: “Como a cultura estadunidense nos afeta muito, o surgimento dessas discussões lá e as marcas estarem se endossando em pautas políticas, trazendo um consumo político para isso, de uma maneira ou de outra respinga aqui no Brasil e faz com que os assuntos comecem a ser discutidos.“

Nos Estados Unidos, o engajamento de esportistas com a pauta antirracista já vem se desenrolando há alguns. O assassinato do horticultor Eric Garner pelo policial Daniel Pantaleo em 2014 desencadeou uma série de atos pelo direito à vida de pessoas negras em todo o território do país.
No mesmo ano, após Pantaleo ser inocentado, os jogadores do Cleaveland Cavaliers entraram em quadra com camisetas estampadas com a frase “I Can’t Breathe” (Não consigo respirar), últimas palavras de Eric Garner, pai de seis filhos e avô de dois netos.
A violência policial volta a ser pauta do debate esportivo em 2016, quando os jogadores de futebol americano Colin Kaepernick e Eric Reid se ajoelham durante o hino dos Estados Unidos em protesto à brutalidade racial e desigualdade. Os dois foram suspensos pela NFL e Kaepernick não teve seu contrato renovado após o fim da temporada, não encontrando um novo clube desde então, ainda que apresente números que apontam maior efetividade do que outros quarterbacks empregados.
O engajamento contra as ações truculentas nos Estados Unidos rompe as fronteiras do país em 2020, quando mais uma vez, a polícia assassina um homem negro. George Floyd era pai de uma menina de seis anos e foi estrangulado até a morte pelo policial Derek Chauvin, mesmo após repetir a frase “I Can’t Breathe” (Não consigo respirar).
Esportistas como o automobilista Lewis Hamilton, os jogadores da Bundesliga Jadon Sancho e Marcus Thuram, LeBron James e o ex-jogador de basquete Michael Jordan foram alguns dos que abraçaram publicamente a causa.

Foto: Reprodução/Instagram
Mas não demorou até que a polícia disparasse nas costas de Jacob Blake sete vezes, diante dos próprios filhos, desencadeando boicotes por parte dos jogadores do Milwaukee Bucks, que foi acompanhado por todos as outras franquias da liga de basquete.
A ação ganhou força e paralisou também as MLB (Liga de Baseball), MLS (Liga de Futebol). Além de adiar as semifinais do torneio de tênis de Cincinnati, em que Naomi Osaka, já que um dos principais nomes da categoria, desistiu de competir.
E o Brasil?
Todo esse contexto chegou também ao Brasil, mas por aqui jogadores e personalidades ergueram suas vozes contra nossos próprios casos de violência policial. O assassinato de João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, dentro de sua casa levou jogadores de todo o país a protestarem, agachando antes do início das partidas.
Alguns jogadores se manifestaram para além da institucionalidade do campo, usando as redes sociais para demonstrar seu apoio e amplificar vozes na luta antirracista. Foi o caso do volante corintiano Gabriel, que publicou em seu perfil lembrando dos assassinatos de jovens negros no Brasil e EUA.

Fora do Brasil, atletas como Vinicius Junior, do Real Madrid, e Richarlison, do Everton na Inglaterra, também usaram o espaço na mídia para se levantarem contra a violência policial que assassinou João Pedro e George Floyd. Rodrygo, também do Real Madrid, publicou imagem de uma criança negra com uma placa perguntando “serei o próximo?“.
Diante de tudo o que estava ocorrendo, e com cada vez mais atletas e figuras públicas aderindo o debate racial, o silêncio de Neymar Jr., jogador brasileiro de maior destaque no mundo, chamava a atenção e gerava cobranças por posicionamento. Este veio de maneira simples, durante a campanha #BlackoutTuesday, que consistia em publicar quadrados pretos no Instagram.
O jogador só mudou para um posicionamento mais energético após o jogo contra o Olympique de Marseille pelo Campeonato Francês. Durante o jogo, Neymar foi alvo de insultos racistas por parte de Álvaro González e reagiu desferindo tapas no agressor. O brasileiro foi punido com suspensão de dois jogos, enquanto o espanhol saiu impune do episódio.
“Neymar, que tantas vezes negou a sua própria negritude, quando vai pra europa começa a sofrer ataques racistas um atrás do outro, até que começa a afirmar em voz alta que é negro, que o que acontece com ele é racismo. E acho que esse movimento pode ser positivo para vermos um levante de consciência nos jogadores brasileiros”.
Pablo Moreno, professor e pesquisador da ufmg
Neymar voltou a protagonizar um posicionamento antirracista em dezembro, em partida válida pela Champions League, quando um jogador do time adversário foi identificado pelo árbitro a partir de sua cor de pele. Ao entender a situação, o jogador brasileiro, junto de Kylian Mbappé, organizou a saída de ambos os times de campo, se recusando a jogar sob a arbitragem do agressor. Na mesma semana, ele voltou a se manifestar nas redes sociais com a hashtag #BlackLivesMatter.

O Papel da Mídia no Combate ao Racismo é Central
E, afinal, qual é o lugar da mídia na formação de uma consciência coletiva que vise o respeito às individualidades e o combate ao racismo?
Não há dúvida de que os meios de comunicação massivos desempenham papel central na conformação da sociedade, funcionando como mediadora do conhecimento e modeladora de comportamentos e atitudes, uma vez que estão intimamente presentes no cotidiano das pessoas, agendando os temas que serão discutidos por elas.
Para a pesquisadora Karla Ehrenberg, professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), a mídia – não apenas a imprensa tradicional e hegemônica, mas a publicidade, as ações de relações públicas e o marketing social de empresas – precisa estar atenta às pautas que emanam da sociedade, entre as quais a pauta antirracista, devendo colaborar de modo que a discussões sobre o assunto sejam conduzidas de maneira benéfica para o equilíbrio social.
Nesse caso, diz Karla, é fundamental que a mídia promova matérias jornalísticas, debates, campanhas publicitárias, bem como proporcione ações de empresas e de influenciadores, a fim de que o tema, em particular o racismo, discutido com profundidade, objetividade, clareza e responsabilidade, alcance e sensibilize a audiência.
Pablo Moreno, por sua vez, sustenta que a mídia é ela própria o racismo porque, como parte da estrutura de uma sociedade racista e sendo ela, no Brasil, tão central, é peça fundamental para esse sistema funcionar.
“Para se pensar nesse lugar de uma mídia antirracista, primeiramente, tem de ser dito em alta voz que a nossa mídia é racista, rememorar os momentos em que ela se comportou de modo racista e pensar no que pode ser feito de diferente a partir de então. Enquanto nada disso for feito, nada muda.”
Pablo Moreno, PROFESSOR E PESQUISADOR da UFMG
A professora Karla destaca o episódio envolvendo a Globo News, em 02 junho de 2020, quando, no programa “Em Pauta”, o assunto discutido era o racismo nos EUA. O que chamou a atenção dos espectadores, contudo, foi que no painel só havia comentaristas brancos para discutir a pauta em questão. O caso teve enorme repercussão nas redes sociais e o canal de notícias a cabo foi muito criticado.
No dia seguinte ao ocorrido, a Globo News tentou contornar o erro, trazendo para o debate – o racismo – um time composto apenas de jornalistas negros.

A mídia alternativa, muito atenta ao episódio em questão, e projetos como o Observatório da Discriminação, por exemplo, são essenciais para a sociedade por publicizar aquilo que a dita “grande mídia” deveria fazê-lo.
O Antirracismo na Sala de Aula
O professor de educação física Luciano Jorge de Jesus dá aulas nas redes públicas de ensino de Belo Horizonte e de Minas Gerais, além de colaborar com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Para ele, o distanciamento das crianças e dos adolescentes às pautas raciais vem diminuindo nos últimos anos, apesar de ainda haver muito progresso a ser feito. Essa aproximação com o debate, de acordo com o professor, não vem só das redes sociais, mas também da abordagem dos educadores nas instituições de ensino.
“Eu, como professor, me favoreço dos debates dessa dinâmica para fazer com que esse assunto se aproxime mais deles. Ainda tenho a vantagem de ser professor efetivo, então, estou o tempo todo conversando com os meus alunos e lidando com temas que vão tangenciar ou centralizar a pauta do racismo. Eu noto que a forma com que eu consigo atuar na escola é moldada ao longo do tempo, enquanto vou me aproximando das pautas e de ações”, declara Luciano.
Ele ressalta que a abordagem das pautas raciais não deve ser focada no professor ou no aluno, mas no “trânsito” entre eles, por meio de espaços democráticos de acesso à informação. “Eu noto que há um interesse em aprender, entender mais [sobre as pautas raciais]. Então vou reforçando os trabalhos e incentivando a moçada. Mas isso demanda do professor um acesso a redes”, completa.
Mobilizações Antirracistas dos Atletas
De acordo com o professor Luciano, a inserção da pauta racial no esporte no Brasil não pode ser analisada como um movimento contemporâneo e mobilizado por meio das redes sociais, mas por um processo histórico que vem sendo construído pouco a pouco, ao longo dos anos, por atitudes individuais e coletivas de atletas no país.
“Não existiria um Aranha, se não existisse um Wladimir, um Lula Pereira. Não existiria Lula Pereira se não existisse Pelé. E falam, ‘o Pelé nunca se posicionou como um homem negro, que absurdo’. Mas jogar bola nas décadas de 1960 e 1970, e consolidar uma carreira internacional para um homem negro já é um posicionamento muito incrível”.
LUCIANO JORGE DE JESUS, PROFESSOR E INTEGRANTE DO OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL
Receio de Represálias
Apesar de acreditar que a mobilização de atletas contra o racismo seja um pouco mais aceita no esporte hoje em dia, ainda há impasses a serem enfrentados, inclusive em relação à resposta dos clubes a essas mobilizações. “Eu já escutei de atletas: ‘o clube não vai querer renovar comigo porque eu falo demais’. Os clubes ainda notam isso. Falar de movimento negro sempre foi falar de algo que não se estabelece no indivíduo”, afirma Luciano.
Os impasses são reforçados por Marcelo Carvalho, fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol: “Até poucos anos atrás, a gente pouco falava sobre racismo no futebol. E aqueles atletas que falavam, ficavam muito marcados por levantar essa pauta. A maioria tinha sua carreira abreviada, as portas se fechavam para eles. O atleta tem receio de falar de racismo, haja vista esse histórico de represália”, afirma, citando os casos de Reinaldo e Aranha.
Atuação do Observatório
O Observatório da Discriminação Racial no Futebol foi fundado pelo administrador Marcelo Medeiros Carvalho depois que os casos de racismo contra o ex-árbitro de futebol Márcio Chagas e os jogadores Tinga e Arouca, em 2014, chamaram sua atenção.
Quando ele procurou informações a respeito dos casos de racismo no esporte e suas repercussões, implicações e desdobramentos, percebeu que não havia um espaço que monitorasse essa temática na internet. Daí surgiu a iniciativa de criar o Observatório.
“Muitas vezes, quando vou dialogar com pessoas ligadas ao futebol, muitas dizem que não vão fazer nada em relação ao racismo, porque nunca acontece nada [como punição]. Então, era preciso ter um lugar onde pudéssemos abordar os casos e seus desdobramentos, para mostrar que, mesmo que a percepção seja de que o racismo não tem consequências, ele existe. Existe uma previsão de punição e existem casos punidos pela Justiça esportiva”.
Marcelo Medeiros Carvalho, fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol
A partir disso, o fundador passou a aproximar a iniciativa dos clubes, atletas e treinadores, obtendo cada vez mais espaço dentro da mídia e do universo esportivo. Ao criar essa rede, o Observatório passou a ser consultado pelos times e pela imprensa para falar sobre racismo, além de ser procurado pelos próprios jogadores para que os casos sejam denunciados. “A ideia principal é que a gente debata o racismo, e formas de acabar com ele, usando o futebol como ferramenta para falar sobre o problema na sociedade”, ressalta.
O professor Luciano Jorge também ressalta a importância das redes sociais para a iniciativa, já que, além de funcionar como espaço de denúncia e monitoramento, ela contribui para a formação de um “outro modo de pensar”, normalizando cada vez mais a abordagem da pauta racial no esporte e tornando o debate mais acessível.
“Por mais que cresça o debate acerca do racismo no Brasil, ainda não temos uma mobilização. Seja uma grande campanha, seja, por exemplo, na CBF, nas federações, seja apoiando o Observatório ou criando algo parecido com ele. A iniciativa é reconhecida pela imprensa, pelos clubes, pelas federações, mas não tem os recursos de nenhuma dessas entidades. Sem colocar dinheiro no combate ao racismo, não podemos avançar”, completa Marcelo Carvalho.
O fundador vê como um dos objetivos do Observatório o incentivo para que, além dos atletas, os próprios clubes abordem a pauta racial no esporte e quebrem o silenciamento que existe entre o meio.
Para isso, o papel da mídia de incentivar essas denúncias também é crucial: “O atleta que não falava de racismo começa a falar, e isso vira uma corrente, porque ele se sente amparado pela mídia, pelo clube, por outros atletas e pela sociedade. Aí sim, começamos a quebrar esse silenciamento, criando uma rede de solidariedade e de apoio para que os atletas falem”.
Ainda que a imprensa tenha passado a abordar mais os casos de racismo no esporte, Marcelo cobra que os desdobramentos desses casos também sejam repercutidos. “Também precisamos aprofundar o debate: não podemos tratar cada caso de racismo como se fosse o primeiro. É preciso entender que esses casos são comuns. A mídia precisa se colocar neste lugar, trazer o histórico de um país extremamente racista, olhar para esta conjuntura e perceber que ela também faz parte do racismo estrutural no Brasil”, defende.
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