por Antônio Augusto Fernandes Ribeiro (@antonioafr_) e Rafael Cyrne Santos (@rafacyrne)
A Copa do Mundo de futebol masculino e as eleições presidenciais brasileiras, dois dos maiores eventos em termos de adesão nacional e impacto popular, coincidem a cada quatro anos desde a redemocratização. Em 2022, o Catar foi o palco do torneio internacional que teve início pouco menos de um mês após o segundo turno das eleições mais acirradas da história do Brasil. Por uma diferença menor que 2% dos votos, o ex-presidente Lula (PT) conquistou pela terceira vez o pleito nacional ao vencer o candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL).
Durante as campanhas à presidência, diversas foram as incorporações de símbolos, cores e outros artifícios na mobilização das candidaturas. De um lado, Bolsonaro e seus apoiadores, assim como em 2018, mantiveram o controle das cores verde e amarelo em todas as manifestações, “apropriando-se” de símbolos e referências nacionais, como a bandeira do Brasil e a “amarelinha”, nome popular para a tradicional camisa amarela da seleção brasileira. Do outro, os apoiadores de Lula tiveram ao seu dispor o vermelho, cor do Partido dos Trabalhadores.
E foi no contexto destas disputas, ainda em um ambiente de muita divisão política, que aconteceu a Copa do Mundo. O campeonato, que representa um momento de exaltação dos símbolos nacionais, como bandeiras e hinos, é sempre destaque em recordes de audiência das transmissões ao redor do mundo. No Brasil, práticas como esticar bandeiras nas janelas, usar a amarelinha para apoiar a seleção nos jogos e pintar as ruas de verde e amarelo são sagrados no imaginário popular. Contudo, em meio às disputas políticas evidentes no país, vem a dúvida: tem como ressignificar ou “despolitizar” os símbolos nacionais e a camisa da seleção após o legado das últimas eleições?
A Revista Marta entrevistou 75 torcedores e os números ilustram parte dos dilemas vividos pelos brasileiros durante a Copa do Mundo: 63% afirmam que ao ver uma camisa da seleção na rua, associam-na primeiro à política. E 54% alegam que, se fossem comprar uma camisa da seleção, dariam preferência a cores alternativas à amarela tradicional, principalmente para que suas intenções não fossem interpretadas como políticas.

O verde e amarelo da Seleção Canarinha e os interesses políticos no Brasil
Política e futebol se misturam com frequência no Brasil, e quando se trata da Seleção Brasileira e a Copa do Mundo, essa mistura é ainda mais marcante e disputada. Durante o torneio, os símbolos nacionais ganham amplo destaque e as cores típicas tomam conta do cotidiano. O Hino Nacional, a Bandeira do Brasil, a camisa da seleção e várias decorações em amarelo, verde e azul são motivos de orgulho e inspiração para os torcedores. Esses símbolos, por sua natureza patriótica e nacionalista, acabam sendo alvos de disputa pelos diferentes grupos políticos da ocasião.
Não faltam exemplos ao longo da história recente do Brasil que evidenciam a utilização das conquistas esportivas e seus impactos sociais por figuras e partidos políticos.
Na Copa do Mundo de 1950, estreia do Brasil como sede do campeonato, vários políticos tentaram vincular suas imagens ao sucesso da seleção, então favorita ao título. Antes da final contra o Uruguai, os jogadores brasileiros se encontraram com dois dos candidatos à presidência daquele ano: Eduardo Gomes (UDN) e Cristiano Machado (PSD). No final das contas, a seleção perdeu a final em casa e nenhum dos dois candidatos conseguiu se eleger.
Outro exemplo foi protagonizado pelos militares durante a ditadura. Em 1970, o sucesso do tricampeonato brasileiro foi amplamente explorado pelo governo do general Emílio Médici, que dispunha de músicas envolventes e publicidades com slogans ufanistas com o intuito de estimular e fortalecer o nacionalismo da população. Em meio a um cenário de intensificação da censura, tortura e perseguição política, consequências do AI-5, a população contagiada pelo título mundial e pelas propagandas do governo era levada a esquecer dos problemas sociais e humanitários causados pelo regime, iludida por uma sensação de falso progresso.

Após a redemocratização e a redução do mandato de 4 para 5 anos, eleições presidenciais e Copa do Mundo voltaram a coincidir em 1994, deixando um legado histórico do uso político dos resultados da seleção. Naquele ano, a seleção conquistou o tetracampeonato e provocou um clima de otimismo nacional. Apoiado por Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente. Oito anos depois, após levantar junto da seleção a taça do pentacampeonato e ver a população se empolgar com o triunfo do país, FHC não conseguiu repetir o feito do seu antecessor e viu seu opositor, Lula (PT), chegar pela primeira vez ao posto de mandatário após três derrotas no currículo.
Lula, por sua vez, foi o responsável por trazer novamente a Copa do Mundo ao Brasil, realizada em 2014. O feito foi considerado uma grande conquista política. No entanto, resultou em desgaste para Dilma Rousseff (PT), sua sucessora, devido ao alto investimento público em infraestrutura para a realização da Copa, somado à crise econômica e social enfrentada pelo país, que motivou o movimento “Não vai ter Copa”, presente nos protestos de junho de 2013 em todo o Brasil.
Durante a Copa, a presidente foi vaiada e acabou vítima de ofensas nos estádios. Em seu governo, manifestações nas ruas se tornaram frequentes e o uniforme da seleção brasileira passou a ser adotado por opositores políticos durante os protestos. Em 2016, após o impeachment de Dilma e ascensão de Jair Bolsonaro (PL) como candidato à presidência, a camisa da seleção assim como a bandeira do Brasil passaram a ser cada vez mais utilizadas pelos apoiadores dos movimentos da direita extremista, levando o país ao que se encontra hoje.
“Vai que me confundem com bolsonarista”
Em 2022, no cenário de extrema polarização entre apoiadores de Lula e Bolsonaro, o país se dividiu, e o futebol, consequentemente, acabou sofrendo diversas influências desse conflito. O uso frequente dos símbolos nacionais e da camisa da seleção por apoiadores do candidato à reeleição, sempre trajados de verde e amarelo, passou a vinculá-los quase que exclusivamente aos grupos políticos bolsonaristas, legitimando-os como “verdadeiros patriotas” a partir de um discurso nacionalista e repleto de discriminação. Esses grupos foram, pouco a pouco, apropriando-se desses símbolos e os incorporando para si no imaginário social.
“Usar a camisa do Brasil hoje faz as pessoas que são Bolsonaro nos abordar e temos que ficar ouvindo absurdos. Eles perderam a noção e se apoderam da bandeira e camisa como se fossem deles, e após tudo que fazem, quando vemos alguém com elas, já esperamos o pior… Infelizmente!”
Afirma a torcedora Leisly Mota, 57, participante do levantamento.
Como consequência desse fenômeno, o uso da amarelinha pelos brasileiros contrários a Bolsonaro e seus apoiadores diminuiu. Mesmo em tempos de Copa, muitos brasileiros ainda não têm segurança em usar a camisa da seleção e admitem receio de serem confundidos com bolsonaristas. Além disso, acreditam que o uniforme passou a carregar significados e valores com os quais não concordam, e, assim, acabam optando por versões alternativas.
Essas percepções dialogam com pesquisa feita pela reportagem que entrevistou um grupo de 75 pessoas, de diversas idades e estilos de vida, acerca das suas impressões com a camisa da seleção. Dentro desse grupo, quase metade (cerca de 46% dos participantes) afirmou que não usaria a camisa amarela da seleção brasileira tranquilamente por motivos políticos.
“Não uso tranquilamente, infelizmente, porque eu sei que querendo ou não a camisa é um símbolo que foi apropriado por um grupo social que eu tenho repúdio e com o qual eu jamais gostaria de ser confundida. Por mais que eu tenha uma camisa do Brasil e a use, até mesmo como gesto de resistência, sempre fica na cabeça “será que estão pensando que eu defendo determinado político?”
Clara, 19
“A camisa tem uma representação política que é totalmente contrária a minha ideologia.”
Fábio Arreguy, 35
“Ainda não me sinto à vontade com a amarelinha. Quando visto ainda sinto um julgamento político sobre a camisa.”
Lucas Rosa, 24
Além disso, 46% das pessoas que participaram da pesquisa afirmaram que, se fossem comprar uma camisa da seleção para torcer na Copa, comprariam uma que não a tradicional “amarelo canário”.
“Acho que foi veiculada uma imagem muito forte entre a camisa amarela da seleção e o nacionalismo/bolsonarismo no país. No início do ano queria uma camisa da seleção e comprei uma preta.”
Matheus Marotta, 19
“Para mim essa camiseta amarela tradicional ficou associada a muita coisa ruim. E, por mais que eu acredite que nós brasileiros não podemos deixar que ela seja manchada por essas pessoas ignorantes que passaram a utilizá-la como símbolo, não tenho muita energia para fazer esse processo de ressignificação. As outras camisetas não me passam tanto essa imagem”
Entrevistado preferiu não se identificar.
Outras manifestações de apoio à seleção brasileira também sofreram com os impactos dessa situação. Um exemplo é a prática de se enfeitar as ruas e calçadas com as cores da bandeira, tradição das Copas do Mundo, mas que este ano despertou receio da associação com movimentos de apoio à extrema-direita.

Um dos impactos dessa separação entre grupos políticos opostos na torcida brasileira pela seleção é o enfraquecimento de parte do apoio para a seleção, tanto pela indissociação dos símbolos nacionais aos ícones da extrema-direita, como por não se identificarem com a situação do país e os jogadores.
“Pra mim não há uma crise de representatividade com a camisa da seleção, há uma crise de representatividade com a própria seleção.”
Breiller Pires, comentarista esportivo da ESPN e editor-chefe do The Players’ Tribune
Em sua coluna no El País, o jornalista Breiller Pires, comentarista esportivo da ESPN e editor-chefe do The Players’ Tribune, explora a apropriação por movimentos de extrema-direita e a apatia do torcedor pela seleção, e constata a existência de um processo maior do que se imagina, que vai além da questão da camisa e está relacionada à própria Seleção Brasileira. Ele afirma que na época a torcida era para que os jogadores fossem convocados para a seleção, mas hoje é o inverso, ninguém quer que os craques do time sejam convocados porque irão desfalcar os clubes em campeonatos que não se adequam às datas da FIFA, por exemplo.
Segundo o jornalista, outros fatores que influenciam no desinteresse pelos símbolos nacionais durante o campeonato são, por exemplo, a ausência de jogadores atuantes no Brasil convocados para a Copa do Mundo, os preços exacerbados para as raras partidas realizadas no Brasil, e, pra completar, os casos de escândalo de corrupção na Federação Internacional de Futebol (FIFA) e na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Mesmo que aos poucos esse processo mina continuamente o ânimo e a sensação de pertencimento do torcedor.
A recuperação dos símbolos nacionais
Em resposta à apropriação da camisa da seleção por grupos políticos partidários e da consequente falta de identificação dos torcedores com os símbolos nacionais e as cores do Brasil, diversas iniciativas têm sido tomadas para ressignificar e “despolitizar” a camisa da seleção.
Poucos dias após as eleições presidenciais, a CBF iniciou uma campanha de marketing para estimular a união do povo brasileiro e exaltar a amarelinha, ao som da música “Tão Bem”, de Lulu Santos. Em parceria, patrocinadoras da seleção também lançaram peças publicitárias pautando o “resgate” da camisa e a superação da questão política que envolve seu uso.
A Nike, patrocinadora oficial que produz os uniformes da seleção, em parceria com a Brahma, também divulgou campanha publicitária para ressignificação da camisa da seleção. Em vídeo publicitário estrelado por ídolos brasileiros como Galvão Bueno e Zeca Pagodinho, a camisa da seleção é descrita como “sua, minha, de toda a nossa torcida”, e que pode ser utilizada “independentemente das nossas diferenças fora de campo”. Além disso, no vídeo de divulgação da camisa da seleção para a Copa, foram convidadas diversas celebridades de apelo popular, como Ronaldo Fenômeno, o streamer Gaules e o rapper Djonga (fervoroso crítico do governo Bolsonaro que aderiu ao movimento e passou a usar a camisa amarela da seleção em seus shows). Jogadores como Richarlison e membros da comissão técnica também se manifestaram com declarações contestando o uso “político” da camisa da seleção.
Lula foi outra personalidade que endossou o movimento para dissociar a amarelinha do bolsonarismo, e chegou a convocar em seu perfil no Twitter os brasileiros para que não temessem o verde e amarelo, reforçando seu pertencimento a todos os cidadãos brasileiros.

Por outro lado, apesar da neutralidade da CBF durante o período eleitoral, postura compartilhada pelos atletas e comissão técnica, Neymar, principal jogador da seleção e referência para muitos brasileiros, declarou voto em Jair Bolsonaro e participou ativamente da campanha para a reeleição do presidente, chegando a participar de lives para pedir votos ao candidato. A ação do atacante gerou uma onda de críticas e uma divisão ainda maior na torcida brasileira, atenuando a desmotivação de muitos brasileiros opositores de Bolsonaro.
“Neymar Jr na seleção, não consigo torcer por ele. Reconheço sua potência, no entanto, tenho horror a pessoa.”
Cláudia, 44 anos
Assim como torcedoras e torcedores estavam receosos com o verde e amarelo, apoiadores do candidato derrotado também demonstraram preocupação com o uso da camisa canarinho e adoção de outros símbolos nacionais. Circulou pelas redes durante o mundial recomendações para que bolsonaristas evitassem o verde e amarelo para que não fossem confundidos com torcedores.

Juntamente à recomendação da troca de vestimenta, os apoiadores de Bolsonaro também foram orientados a não cantar o hino nacional e substituí-lo pelo hino da independência. Veremos nos próximos meses e anos se a preocupação de serem confundidos com torcedores é apenas momentânea. Ao que tudo indica, a disputa simbólica, sobretudo em torno da camisa canarinho, está longe de finalizada.