Sob tutela no país árabe, presença de árbitras nos gramados e de jornalistas na cobertura são marco para o futebol rumo à Copa da Austrália e Nova Zelândia, em 2023
Por Wesley Felix (@wesleyfelixz)
Uma Copa do Mundo no Oriente Médio. O que algumas décadas atrás era inimaginável, hoje é realidade. Entre novembro e dezembro de 2022, o Catar recebeu a 22ª edição do maior evento de futebol do planeta, pela primeira vez ocorrendo na Ásia Ocidental. Apesar do marco histórico, a organização desta Copa rendeu muitas controvérsias por parte da comunidade internacional, desde os casos de corrupção envolvendo a escolha da sede até a preocupação com os direitos dos trabalhadores e da comunidade LGBTQ+ e a liberdade das mulheres. Ao lado das violações de direitos humanos, a Copa do Catar tem se mostrado um ponto de virada dentro dos gramados e no âmbito profissional, ao menos para as mulheres. Afinal, qual é o saldo da participação feminina neste Mundial?
País árabe, o Catar é uma monarquia absolutista que opera suas leis com base no wahabismo, uma forma fundamentalista e ultraconservadora da religião islâmica. Por isso, a liberdade dos cidadãos é restringida em diversos pontos e as mulheres acabam tendo menos direitos do que os homens, vivendo numa espécie de “tutela” em relação a eles: para estudar, trabalhar ou viajar, a mulher precisa da autorização de um homem que faça parte de sua família ou que seja responsável por ela. O Catar ainda é bem “liberal” se comparado às demais nações que seguem o islamismo. As mulheres, por exemplo, podem andar na rua desacompanhadas, algo diferente da maioria dos vizinhos do Oriente Médio, e as estrangeiras não precisam utilizar a tradicional burca ou hijab em sua visita ao país – no entanto, precisam vestir roupas que cobrem o ombro e o joelho (assim como os homens).
A torcida
Contudo, diversos pontos de segregação de gênero foram observados em espaços públicos durante a Copa do Mundo, como, por exemplo, no transporte, em que havia diferentes tipos de vagões no metrô, entre eles o “family” – próprio para famílias e mulheres desacompanhadas – e o “standard” – para os homens desacompanhados. Na saída dos estádios, também havia uma diferenciação para que homens e mulheres desacompanhadas não caminhassem lado a lado. Tais restrições fogem do que estamos habituados na sociedade ocidental e, por isso, fez surgir preocupações em relação à participação feminina no megaevento. Um total de 1,2 milhão de turistas eram esperados para os quase 30 dias de realização da Copa e, apesar de os números ainda não serem exatos, estima-se que a presença de torcedoras mulheres tenha sido significativamente menor do que a de homens no Catar. A estudante Sarah Campos, uma das brasileiras que assistiu à Copa in loco, conta que teve como principal ponto de hesitação a questão da vestimenta local.
“Eu fechei toda a viagem e então veio a minha primeira preocupação, que seria o dress code de lá. A maneira de se vestir é muito diferente do Brasil e isso era o que mais estava me preocupando, porque não quero receber nenhum tipo de punição ou receberem a minha forma de se vestir como um ataque. Logo de início, parei para ver essa questão das roupas e como eu poderia me adaptar. Lá faz muito calor e, por exemplo, nas praias, não são todas que posso ir de biquíni, como no Brasil”, afirmou Sarah, que conversou conosco três dias antes do embarque.
Sarah chegou ao Catar já com a Copa do Mundo em andamento. (Foto: Arquivo pessoal)
Graduanda em Jornalismo, Sarah foi ao Catar como torcedora, mas também aproveitou a oportunidade para produzir conteúdo para suas mídias sociais. Acompanhada do irmão e de outros integrantes do Movimento Verde e Amarelo (MVA) – espécie de torcida organizada da seleção brasileira -, a jovem de 18 anos ficou no país até o início das oitavas de final, hospedada nas acomodações da Fifa, que são tendas no deserto. Ela assistiu ao jogo de estreia do Brasil contra a Sérvia e a partida contra Camarões. Apesar da cultura e imposições diferentes, Sarah ficou tranquila com sua ida por ter pessoas próximas ao seu lado.
“Como estarei acompanhada do meu irmão, não cheguei a ficar insegura de ir. Além disso, estou acompanhando uma brasileira que mora no país há um tempo e conversei com uma amiga que morava lá. Conheço outra menina que já está por lá e estou acompanhando as influenciadoras e as integrantes do Movimento Verde e Amarelo. Mas não vi de perto nenhuma menina desistir de ir para essa edição da Copa por conta das imposições para com as mulheres”, comentou Sarah.
Desde muito cedo ligada ao futebol, Sarah sempre nutriu o desejo de ir a uma Copa do Mundo. Ela perdeu a oportunidade de ir à edição do Brasil, em 2014, mas conseguiu ver os Jogos Olímpicos Rio 2016 e a Copa América de 2019, eventos que aconteceram em nosso país. Neste ano, a oportunidade surgiu quase que em cima da hora: ela só começou a se organizar no segundo semestre e teve a certeza de que iria para o Catar a menos de duas semanas para a abertura do mundial. Por conta do pouco tempo hábil, ela acredita que dificilmente iria para a Copa sem a companhia de seu irmão. “Como foi tudo resolvido de última hora, não teria nenhum tipo de segurança de eu ir sozinha”, confessou a estudante.
Profissionais
Acompanhando um movimento que foi iniciado desde o final da década passada, a Copa do Catar representou um marco para as mulheres no futebol. É a primeira vez nos 92 anos de história que uma Copa do Mundo FIFA conta com a presença de mulheres na arbitragem. Três árbitras oficiais e três assistentes foram escaladas para o Mundial. Uma dessas assistentes, inclusive, é a brasileira Neuza Back, de 37 anos, que integra o quadro de árbitros da FIFA desde 2014 e também esteve presente na Copa do Mundo Feminina de 2019 e nos Jogos Olímpicos Rio 2016 e Tóquio 2020. A catarinense fez sua primeira participação no duelo entre México e Polônia, que ocorreu no Estádio 974, pela primeira rodada do grupo C da competição, em 22 de novembro. Neuza foi a quinta árbitra, auxiliando fora dos gramados, e também reserva dos assistentes.
Freppart e Neuza foram auxiliares no jogo da 1ª rodada. (Foto: Divulgação/FIFA)
Nesta mesma partida, a francesa Stéphanie Frappart foi a quarta árbitra. Ela e Neuza entraram para a história porque foram as duas primeiras mulheres a serem oficialmente escaladas para uma partida da Copa do Mundo masculina. A arbitragem de campo foi formada pelos australianos Chris Beath (principal) e Anton Schetinin e Ashley Beecham (auxiliares). Além de Frappart e Neuza, completam a lista de árbitras convocadas para o Mundial de 2022: a ruandesa Salima Mukansanga e a japonesa Yoshimi Yamashita como oficiais de campo e a mexicana Karen Díaz Medina e a estadunidense Kathryn Nesbitt. O número total de mulheres representa apenas 5% do total de árbitros escalados para a Copa, que tem 105 profissionais, sendo 36 oficiais e 69 assistentes.

Fonte: Revista Marta
Na cobertura jornalística, a Copa do Catar também foi um marco para as mulheres. É possível identificar a presença delas em diversos veículos e em todos os campos de atuação, seja na produção, reportagem, apresentação e narração. O Grupo Globo, principal conglomerado comunicacional do Brasil, contou com narradoras mulheres pela primeira vez em seus mais de 50 anos de cobertura da Copa do Mundo: Natália Lara, em transmissões do SporTV, e Renata Silveira, pela Globo. Natália fez sua estreia logo no segundo dia do evento, em 21 de novembro, no empate por 1 a 1 entre Estados Unidos e País de Gales, válido pelo grupo B. Renata, por sua vez, narrou Dinamarca e Tunísia um dia depois, pelo grupo D, que terminou com placar zerado. Nos primeiros dias da Copa, ela tornou-se substituta do narrador Luis Roberto, que apresentou rouquidão por uma sinusite e precisou ser afastado das transmissões preventivamente.
Natália e Renata não viajaram ao Catar e fizeram as narrações do estúdio, no Brasil, mas, um total de nove profissionais mulheres estão no país-sede fazendo a cobertura pela Globo. Débora Gares, Gabriela Ribeiro e Julia Guimarães estão nas reportagens, enquanto Carol Barcellos, Karine Alves, Giovanna Biotto e Paloma Fukusig participam de entradas ao vivo direto do Catar; Já Priscila Carvalho chefiou a reportagem da seleção brasileira. E Ana Thaís Matos, que é a primeira mulher a comentar jogos da Copa do Mundo pelo canal aberto da emissora – ela já havia comentado a Copa Feminina de 2019, mas na masculina o fato é inédito. A jornalista fez sua primeira aparição nas transmissões na estreia do Brasil na Copa, em vitória por 2 a 0 diante da Sérvia. Galvão Bueno e o ex-jogador Júnior a acompanharam nesta jornada. As atletas Formiga, Cristiane e Tamires e a jornalista Renata Mendonça também comentam jogos nesta Copa, variando entre Globo e SporTV, mas direto do Brasil.
Hoje uma das referências dos comentários esportivos brasileiros, Ana Thaís Matos também é muito engajada na pauta feminista. Antes mesmo de ascender nacionalmente na Globo, ela já cobrava uma maior inclusão feminina nas redações e estúdios jornalísticos, defendendo que as mulheres deveriam passar a ocupar um lugar de também expressar sua opinião no esporte, não apenas oferecendo entretenimento aos homens, como aconteceu predominantemente por muitos anos. A liberdade das mulheres no Catar, evidentemente, foi tema de suas falas recentes. Em entrevista ao G1 às vésperas do evento, Ana concordou que a Copa seria masculina, mas deixaria um legado feminino ao país-sede após o evento.

Fonte: Revista Marta
“Eu tenho trabalhado pensando muito nisso: acho que a Copa do Mundo masculina tem que deixar um legado para as mulheres do Catar. Esse é um ponto fundamental. Vamos ter uma Copa do Mundo feminina no ano que vem e a gente quer mais mulheres praticando futebol, e também vivendo o futebol na arquibancada. Então eu espero muito que os questionamentos sociais dessa Copa passem pelo papel da mulher, pela liberdade feminina. Estou esperando uma Copa muito masculina, com estádios cheios de homens, com muitos jornalistas homens. Acho que nós (Globo), como grupo, vamos quebrar um paradigma muito importante nesse Mundial”, disse Ana.
Ana Thaís Matos é uma das referências do jornalismo esportivo nacional. (Foto: Divulgação/Globo)
É preciso lembrar que a Copa do Mundo de 2018 também apresentou impasses para as mulheres, tanto no âmbito esportivo e profissional quanto na questão do machismo presente na cultura da Rússia, país-sede daquela edição. Apenas 14% do total de jornalistas credenciados para aquela Copa foram mulheres – os números oficiais da Copa do Catar ainda não foram divulgados, logo não é possível fazer uma comparação. Segundo levantamento do Puntero Izquierdo, ao menos 47 mulheres exerceram alguma função na comissão técnica de 21 das 32 equipes que disputaram aquela Copa. No Brasil, foram duas, que, inclusive, se tornaram as primeiras mulheres brasileiras em Copas do Mundo: Andréia Picanço, médica assistente, e Cláudia Faria, assistente administrativa. Andréia voltou a ser convocada e está na equipe brasileira no Catar.
Diante da fala de Ana Thaís Matos, é justamente isto que se espera da Copa do Mundo de 2022. O Catar, que ainda é um país novo, porque conquistou sua independência em 1971, começa a “dar as caras” e aparecer para o mundo. Com pouco menos de três milhões de habitantes e 11 mil km², o pequeno país utilizou a estratégia de receber eventos esportivos para atrair a visibilidade da comunidade internacional. Foram diversos Mundiais de modalidades olímpicas recebidos nos últimos anos, incluindo ginástica artística, natação e atletismo. Ao mesmo tempo em que o mundo teve contato com a riqueza e as belezas naturais do Catar, também tomou conhecimento de um governo autoritário que cerceia direitos das mulheres e de trabalhadores e criminaliza relacionamentos homoafetivos.
Apesar de já ter a experiência de ter sediado grandes competições, esta é a primeira vez que a nação do Oriente Médio recebe um megaevento, que fura qualquer tipo de bolha e repercute no mundo todo. Assim, os problemas são ainda mais expostos e cobranças são feitas a todo momento. Ainda que o país tenha tido pulso firme em não afrouxar suas leis para atrair os turistas do ocidente e de outras partes do planeta, há a esperança de que o Catar possa rever seus conceitos após a passagem da Copa do Mundo. O ponto do abuso aos trabalhadores já foi parcialmente resolvido após seguidas denúncias da comunidade internacional e espera-se que isto também aconteça para a comunidade LGBTQ+ e para as mulheres. Este seria o melhor legado que o evento da Fifa poderia deixar no país.